quarta-feira, 28 de abril de 2021

A freira de Blumenau. Wolf Hornke

Em fins de agosto do ano passado convidamos, eu e a Fernanda, um casal de amigos para jantar em nosso apartamento para depois assistirmos juntos um filme na Netflix. A noite acabou tornando-se fria e chuvosa, ideal para ficar em casa.

O jantar que preparamos a quatro mãos, eu na carne e no molho, a Fernanda nos complementos e na salada, foi muito apreciado e elogiado pela Andrea e pelo Hugo, nossos amigos, especialmente depois do consumo de duas garrafas de Merlot, Concha y Toro. Quando já estávamos quase prontos para nos mudarmos para o sofá e as poltronas para escolher um filme, toca a campainha e eu – meio a contragosto – fui lá ver quem era.

– No mínimo é aquela chata do terceiro andar que quer vender a rifa pra excursão do filho – pensei – Ou então o imbecil do síndico, para pedir nosso voto para a chapa dele mais uma vez. Isso são horas para perturbar os vizinhos?” pensei comigo e fiquei com a cara mais irritada de que era capaz ao abrir a porta.

Deparo-me com Dieter: velho companheiro dos tempos de movimento estudantil que eu havia reencontrado havia uma semana, ao acaso, no centro de São Paulo, depois de 40 anos de não mais ver. O espanto não chegou a suplantar eficientemente a irritação na minha cara, de modo que consegui ofender o amigo duas vezes, uma pelo espanto, outra pela raiva. Percebo que, ao pedir desculpas consternadas por seu repentino aparecimento, Dieter faz um movimento quase imperceptível de fuga, como se fosse virar o corpo em direção aos elevadores. Mas consegui controlar-me e impedir que se esvanecesse pedindo desculpas por minha vez, contando sobre quem eu esperava encontrar na porta àquela hora, enaltecendo que suas visitas jamais seriam inoportunas e convidando-o com o calor possível naquelas circunstâncias a entrar e conhecer a Fernanda e nossos amigos.

Quebrou logo o gelo admitindo a inconveniência de aparecer àquela hora sem avisar e relatando que sua mulher tinha viajado com os três filhos, dois meninos e uma menina, para visitar parentes em Minas, de modo que estava sozinho na casa deles em Grajaú, periferia sul da cidade. Tivera repentinamente um acesso de solidão e uma vontade enorme de lembrar dos velhos tempos de 68. Assim resolveu fazer uma visita de surpresa ao amigo a quem reencontrara por mero acaso na semana anterior o que trouxera a sua memória muitas lembranças daqueles tempos.

Assim logo ganhou a simpatia de todos e começamos principalmente ele e eu a relembrar antigas aventuras e peripécias do movimento estudantil. A verdade é que ele tinha muito mais a contar do que eu, e foi sendo requisitado cada vez mais a contar suas próprias vivências. Foi aí que ele perguntou se queríamos ouvir uma história que lhe parecia sumamente interessante, que se passou naquela época.

Claro, todos queriam ouvir a história, mas não sem que antes fosse aberta uma nova garrafa de Concha Y Toro, desta vez um Cabernet. Só me resta aqui tentar reproduzir a história aqui de memória, da melhor forma que posso, da maneira como foi contada:

 

Esta história se passou em 19 e 20 de abril de 1969 e é totalmente verdadeira.

Maria Antônia era socióloga recém-formada. Firme nas lutas sociais, participava de todas as reuniões da categoria e do sindicato dos professores. Recém-formada tinha conseguido um emprego de professora no Colégio Maria Imaculada lá na Vila Mariana.

Odiava depender de qualquer ajuda além de sua própria competência para conseguir um emprego, tinha até ameaçado sua mãe de desamor eterno se ela se envolvesse. Mas, dizem que nem Jesus segura as mães e quem era Maria Antônia para segurar a velha carola autenticamente mineira, dos joelhos eternamente inchados e meio descascando velhas crostas, meio formando novas em consequência de seu rezar apaixonado e contínuo, de joelhos, pelo bem de suas duas filhas e da felicidade do mundo em geral. Mas, quando a Madre superiora do convento, diretora do Colégio, lhe ligou pessoalmente pedindo uma entrevista, mencionando de passagem a santa de sua mãe, não teve como desconversar, acabou aceitando o emprego.

O pai, camponês da Ligúria, tinha sido enfiado junto com os pais dele num dos últimos navios de fugidos do fascismo em 1923, mas não entendera muita coisa. Confundiu tudo e achava que sua tarefa era difundir o fascio no novo mundo. Não se atrapalhou, casou com uma carola mineira, quase tão boa como uma carola da Ligúria, estabelecendo seu negócio de marcenaria ao longo de 30 anos em Minas Gerais e sempre falando das excelências do sistema fascista a quem lhe prestasse atenção. Eis a razão por que simpatizou de imediato com o potencial genro que a filha Maria Antônia lhe apresentou: um alemão louro, jovem, de aparência simples e honesta.

Foi assim que entrei nessa família. A mãe carola logo começou a me cevar como a uma tilápia na engorda. Aos sábados preparava uma feijoada maravilhosa, coisa de louco, saborosa, cozida com os melhores pertences e alguns pedaços de laranja, com a couve e o molho de tempero precisos, sem exageros, o arroz soltinho. Isso após uma aula de piano, de duas horas, que a Maria Antônia me ministrava nas manhãs de sábado na escolinha de música de que era sócia, não longe da casa dela, e que funcionava de segunda a sexta, ficando ociosa nos fins de semana. Eu estava perfeitamente encaçapado como diziam na roda de snooker na faculdade. Até já tinha dado a Maria Antonia um anel de noivado de ouro, fininho, é verdade, porém de 18 quilates verdadeiros, que comprara com alguma dificuldade de meus parcos vencimentos de professor particular de Inglês e em cuja face interior eu mandara gravar em letras minúsculas: Antonia & Dieter forever.

No início as aulas de piano eram sérias e produtivas – eu até já tocava uma ou duas das pecinhas mais simples do livro de exercícios –mas com o passar do tempo meu talento musical começou a definhar. Cedia lugar a outros interesses menos sublimes. Beethoven substituindo Mozart. Beijos e carícias apaixonadas dificultando a pureza da linguagem musical.

Maria Antônia era uma morena bonita, corpo firme e pernas longas, de 25 anos, três anos mais velha do que eu. Apenas seu nariz adunco e a testa um pouco larga demais impediam que fosse considerada uma verdadeira beldade. Inicialmente devido a sua educação religiosa fortemente autoritária e depois, quando passou a integrar a ala mais progressista da igreja, devido a sua dedicação quase exclusiva à música e aos estudos, Antônia carecia de experiência no amor. Namoricos inocentes com colegas de escola, um grande amor romântico, não correspondido, pelo professor de História, algumas trocas de cartas insinuantes com rapazes solitários que publicavam anúncios em revistas de fofocas editadas especialmente para corações solitários, enfim, nada que colocasse em xeque sua condição de marinheira de primeira viagem.

Eis que aparece um alemão jovem e – modéstia à parte – bonito, sensível e inteligente, desejoso de introduzir a italianinha às artes do amor. Eu que, apesar de ser mais novo e ainda ingênuo em vários sentidos, já era bastante experiente nas modalidades da paixão praticadas longe da USP, mais precisamente no quadrilátero do pecado, também chamada então de Boca do Luxo, no centro de São Paulo, onde trabalhara de garçom por quase dois anos, antes de entrar na faculdade.

O namoro foi lento, sincero e sem falsidades. Com muito carinho e conversas abundantes sobre a inutilidade da virgindade nos tempos modernos, coisa que ela partilhava até mais informada do que eu; passeios a parques e represas, apresentações populares de música clássica, filmes de arte no Cine Bijou, Teatro de Arena e Oficina, cinema , curso de economia política ministrado pelo marido de uma amiga, filósofo e diretor de empresa,  reuniões políticas e pequenas festas na casa das amigas dela e, lógico, as infalíveis feijoadas aos sábados; tudo entremeado de momentos particulares na minha edícula alugada na casa de uma família, independente e com banheiro próprio. Concertos de Mozart num toca-fitas simples, muitos beijos, e, por que não admiti-lo, amassos cada vez mais avançados, a mão procurando o caminho, deslizando carinhosamente para dentro da roupa, tateando, apertando, recuando de medo de ultrapassar os limites, voltando com todo cuidado e ... epa!! ... de repente seus olhos se fecham, seu beijo se torna quase desesperado, geme, treme, estarrece e ... aos poucos vai relaxando. E logo em seguida perde o interesse na brincadeira. Explica o movimento do concerto que está passando no toca-fitas, procura voltar aos temas do cotidiano o mais rápido possível. 

E o namoro continua, lento e cuidadoso. Para atestar a saúde sexual dos dois parceiros visita ao médico: um progressista que orienta sobre a simplicidade do ato e declara tudo azul para levantar voo.

Ela tomando pílula durante meses e a vida continuando sem novidades.

Eis que sou convidado para um baile no clube Kolping em Campo Belo, zona sul de São Paulo. Beatles num som estéreo de qualidade. Maria Antônia está deslumbrante.  Ao som de Yesterday nossos corações se fundem e sinto nitidamente que ela está avançando seu ventre de encontro a minha coxa quando dançamos agarradinhos. Despedimo-nos apressadamente dos conhecidos ao som de Hey Jude e pegamos um táxi para a casa da amiga dela que tinha reservado o quarto de hóspedes lindamente mobiliado e florido para o casal recém-casado.  Mas, após as preliminares, em que ela teve o orgasmo de sempre, a continuação foi meramente protocolar. Mais por compadecimento do que desejo, aguentou a penetração e meu próprio orgasmo me deu vontade de pedir desculpas. Nada mais de relevante aconteceu naquela noite e em várias outras que seguiram o mesmo padrão. Nem só de sexo vive um casal moderno e inteligente.

Nas feijoadas de sábado participava regularmente o irmão mais velho de Maria Antônia, Mário Belo, solteirão de 40 e tantos anos, obeso e vítima de sudorese nas extremidades. Sujeito afável, de estilo manso, adorava os alemães por seu pertencimento ao povo do seu ídolo, Adolf Hitler. E eu, como tal, era naturalmente um interlocutor privilegiado. Para desfrutar a feijoada na maior paz, eu aceitava uma cachaçazinha mineira antes e pedia outra depois, sempre ostentando o maior interesse pelas palestras do mestre.

Mário Belo era falante e bem articulado quando se tratava de seu tema preferido; era um autêntico scholar em matéria de nazismo e Hitler. Conhecia todos os passos, todos os discursos, todas a ideias sublimes do Führer, desde seu nascimento na Áustria em 1889 até seu amargo fim em 1959 quando foi soterrado por uma avalanche perto de Bariloche na Patagônia argentina.

Sabia de cor todos os mínimos detalhes da vida e da fuga de Hitler do bunker em 29 de abril de 1945, o voo periclitante com Hanna Reitsch, a aviadora heroína dos chefes nazistas, de um campinho no centro de Berlim por cima das tropas russas, até Hörsching na Áustria, depois até Barcelona na Espanha, sabia o nome do capitão do submarino U-530 que teria levado o chefe até a Argentina e até o nome dos principais gestores de seu exílio na Argentina, amparado pelo governo Peron.

Certo sábado, no início de 1969, Mário Belo, depois de tomar um ou duas mineiras a mais, fez a grande revelação: a morte do Führer em Bariloche foi apenas encenada. Na verdade, ele continuava vivinho da Silva, apenas teve que mudar de local de exílio por causa da queda do governo Peron. Agora quem estava protegendo ele era o amigo Stroessner, numa colônia alemã no Paraguai. E tem outra:

– Vocês já ouviram falar dos túneis de Blumenau?

Obviamente não tínhamos a menor ideia do que se tratava e, assim, tivemos que lhe dar luz verde para continuar:

– Os túneis originais existem há mais de 60 anos e inicialmente ligavam o mosteiro das freiras catequistas com a sacristia da Sé. Era um refúgio para as freiras em caso de invasão do mosteiro por malfeitores, mas, dizem as más vozes que, com o passar do tempo, foi servindo de ponto de encontro entre alguns freis ainda pouco convictos das virtudes do celibato com eventuais freiras já cansadas da eterna abstinência.

Acontece que em 1939 é inaugurado no centro da cidade o imponente teatro Carlos Gomes, financiado pelo governo alemão. Para inaugurá-lo é convidado o próprio Adolf Hitler, que contava com ampla simpatia na população de origem germânica da cidade e de todo o estado de Santa Catarina. Devido à situação política crítica na Europa, os construtores resolvem adotar medidas de proteção ao grande líder: criam novas rotas de fuga, ampliam e modernizam a rede de túneis com algumas estações e acomodações intermediárias, interligando vários colégios e paróquias com o Teatro, e criando uma rota de fuga para o rio Itajaí. O governo Getúlio deixou claro que não permitiria essa farra do boi em Santa Catarina, mas há quem diga que o Führer compareceu assim mesmo, extraoficialmente, reunindo os simpatizantes nazistas no auditório do Colégio Bom Jesus.

– É aí que entra o gênio do velho – disse Mário Belo... O Führer sempre considerou Santa Catarina uma fonte importantíssima para a formação de camisas-marrons. Argentina e Paraguai já estão garantidos, Colômbia e Venezuela com movimentos fortes, o Brasil é o próximo passo. Com a virada no Brasil, a América do Sul é nossa!  Podem crer: este ano o velho vai comemorar seu octogésimo aniversário nas catacumbas de Blumenau, ao lado de algumas dezenas de militantes selecionados do mundo todo. E de lá vamos sair como marimbondos de fogo num verdadeiro Blitzkrieg político e ideológico para restabelecer o Reich e incendiar o mundo.

– Discurso um tanto quanto megalomaníaco – pensei comigo... Mas ... se só um por cento disso for verdade, vai dar uma puta de uma matéria de jornal. Com isso posso até conseguir emprego no Jornal da Tarde ou na Realidade.

E assim, candidatei-me de imediato a esse encontro em Blumenau. Acenei com minha vantagem de cidadão alemão que falava as duas línguas fluentemente e poderia, por exemplo, servir de intermediário entre a futura safra de garotos marrons brasileiros e a elite dos fiéis à bandeira na antiga pátria.

Aceitaram minha candidatura um pouco antes do grande evento.

Chegado na cidade de Blumenau em bom tempo, fui levado, após a devida identificação por senha e contrassenha, diretamente à biblioteca.  Lá fomos informados, eu e mais uns 15 militantes presentes, da existência de um salão subterrâneo para 150 pessoas em que seria realizada a conferência. Num canto do escritório do diretor, escondida atrás de um painel falso, havia uma escada em caracol que descia seis metros para dentro da terra. Fomos divididos em grupos de cinco e deveríamos esperar o guia ao pé da escada para seguirmos em direção ao salão.

Quando chegou, o guia logo orientou:

– Não se preocupem, é uma reta só, sigam-me e não liguem para as saídas laterais.

 A galeria parcamente iluminada por luzes de emergência, como numa galeria de mina, era estreita, mas suficientemente alta pra deixar passar em pé uma pessoa de cada vez. Resolvi ficar no fim da fila para ter melhor controle dos acontecimentos. Peguei o primeiro desvio à direita, só para ver se havia algo diferente por aí.

Uma freira apareceu logo adiante, toda paramentada e com expressão aflita:

– Venha, frei, vamos sair desta loucura! Vamos para um lugar mais tranquilo, até essa bandalha passar.

E foi me puxando suavemente para longe da encruzilhada.

“Maria Antônia?”, perguntei, pois achara a figura da freira muito parecida com a de minha noiva: mesma altura e certa semelhança no rosto. Apenas a voz era diferente e a freira usava óculos. Mais tarde com mais luz fiquei sabendo que o cabelo dela também era diferente, bem mais claro que o da Antônia.

 “Como?” perguntou, virando-se para trás.  “Meu nome é Maria Benevides e sou do Convento das Carmelitas aqui de Blumenau”.

“Tudo bem”, respondi, “mas vou lhe chamar de Bem-vinda, se não se incomodar, pois é assim que percebo sua presença aqui neste momento.”

Depois de um caminho longo e tortuoso chegamos a um cômodo suavemente iluminado cujos móveis predominantemente em cores pastel contrastavam com a luminária e um abajur vermelhos e as molduras verde-claras de cinco quadros dispostos na parede ao lado da cama. Eram desenhos a bico de pena com motivos pios. Padres e freiras rezando, ajoelhados diante da cruz, ou olhando o pôr do sol do alto de uma montanha, ou sentados em volta de uma enorme mesa de jantar no salão de um mosteiro, etc. Aproximei-me para apreciar de perto e percebi pequenos detalhes: padres e freiras apalpando os traseiros uns dos outros enquanto rezavam ajoelhados; ou, na mesa de jantar no mosteiro, estando padres e freiras sentados em ordem alternada ficavam só com a mão esquerda sobre a mesa enquanto a direita estendia-se por baixo ao colo do vizinho ... foi aí que a irmã Bem-vinda me chamou em voz baixa: “ô frei, está tão frio hoje, venha me aquecer um pouco aqui.”  Percebi que estava nua debaixo das cobertas e os olhos mendigando por minha presença. Espantado eu disse: seja bem-vinda, ó minha noviça!

E assim teve início uma das noites de amor mais emocionantes de minha vida, com paixão desenfreada de lado a lado, alegrias explosivas, gemidos e sussurros intermináveis, até juras de amor eterno.

De madrugada, Bem-vinda levou-me até o pé da escada em caracol. Despediu-se com um longo e apaixonado beijo e saiu da minha vida para sempre. Chegando lá em cima no escritório, indaguei se o evento já havia terminado e a plantonista olhou-me de modo desconfiado, perguntando:

– Você não faz parte daquele grupo de desordeiros que tentou invadir a cidade ontem, faz?

“Não, não”, respondi, “pelo amor de Deus... eu sou apenas um jornalista católico de São Paulo que veio a convite da irmã Benevides conhecer o convento e a Biblioteca. O que aconteceu com esses desordeiros de que a Senhora falou?”

 “Bom, eu não sei se posso falar”, hesitou a irmã, “só se o senhor garantir que meu nome não vai aparecer”.

Assegurei-lhe total sigilo e ela logo desabafou:

– É que o bispo de Joinville, responsável pela região toda, Dom Warmerlindo, é quem autorizou secretamente esse evento. Dizem que quando jovem foi membro da juventude hitlerista de Pomerode. Prometeu até uma promoção ao nosso padre Geraldo daqui pela liberação do encontro. Mas, parece que a notícia chegou até o Vaticano por meio da arquidiocese de São Paulo. Ontem, à tarde ligou o próprio papa Paulo VI pra Dom Warmer e pediu esclarecimentos. Disse que ia enviar Dom Paulo Arns de São Paulo a Blumenau para mantê-lo a par da situação.

– É óbvio que Dom Warmer ficou apavorado. Assegurou ao Papa que se tratava apenas de boatos maliciosos e que na diocese dele jamais poderia acontecer tal desmando, pois a vigilância cristã era inflexível em Santa Catarina. Mandou dissolver o congresso imediatamente e dispersar os participantes. Eu mesma fui encarregada de levar a notícia aos líderes da reunião o que fiz carregando um pouco nas tintas. Falei que o delegado da polícia civil Sternhagelvoll, conhecido como Sterni, que autorizara secretamente o encontro, tinha sido preso e que a polícia militar tinha sido mobilizada pelo governador. Viriam dentro de meia hora para prender todo mundo. Houve duas ou três vozes que se pronunciaram pela permanência de todos no local, lembrando que o regime brasileiro seria até simpático ao pensamento do grupo, mas a maioria apavorou-se e começaram a fugir atabalhoadamente. Os mais sensatos lembraram que a presença do Führer não poderia absolutamente tornar-se pública, sob pena de levar à proscrição do grupo brasileiro até o fim dos tempos.

– Só com a orientação firme e decidida das irmãs Christina e Maria Benevides conseguiram organizar uma fila para sair aqui pela biblioteca, mas alguns foram pela saída para o Itajaí onde havia um barco para levar os líderes. Havia até um sujeito muito mal encarado, bem das antigas mesmo, de seus 80 anos que só falava alemão e se eu não soubesse que Hitler se matou com um tiro na cabeça, no fim da segunda guerra mundial, eu diria que poderia ser ele.

Sem mais comentários ou delongas fui direto à Rodoviária e, depois de um café reforçado peguei o ônibus para São Paulo. Chegando lá, fui direto para minha casa dormir o sono dos justos. 

Durante vários dias tentei vender a história para os principais jornais e revistas de São Paulo: Estadão, Folha, Jornal da Tarde, Veja, Realidade. Todos me recomendaram experimentar um outro caminho, no campo da ficção, ou então procurar um Psicólogo. Assim continuei minha carreira em pequenos jornais e revistas de periferia por vários anos até que me cansei de ser miserável e virei correspondente de um importante revista semanal alemã, onde estou até hoje.

Aos poucos a vida voltou a seus eixos. Meu cunhado Mário Belo soube que o meeting nazista nos túneis de Blumenau tinha sido um fracasso, pois o Führer teria desistido no último minuto. Por sua frustração virou testemunha de Jeová e dois anos mais tarde informou solenemente que seu ídolo morrera no Paraguai de velhice. Tudo igual num mundo inalterado.

Minha relação com Maria Antônia, entretanto, mudou totalmente, embora até hoje eu não saiba como isto aconteceu. Passamos a conversar mais, fazer tudo junto, namorar toda hora aos beijos e abraços, tornando-nos até inconvenientes em público em alguns momentos. Passamos a sentir enorme falta se a gente não se via algum dia. Nos momentos de excitação, que passaram a ser bastante frequentes, eu eventualmente exclamava:

– Seja bem-vinda, minha freira ...

E ela respondia:

– Vem, meu frei, vem agora que não aguento mais

E assim, alguns meses depois, nos casamos e desde então vivemos muito felizes até hoje.

 

Quando Dieter terminou sua história, já era madrugada e ninguém mais tinha coragem de ir para casa. Arrumamos o sofá-cama para o casal e um colchão para o Dieter com roupa de cama e cobertores para todos.

Todos dormiram felizes, como anjos.


Wolf Hornke é psicólogo e escritor. Como é leitor contumaz muito tem a nos ensinar sobre literatura. Em relação à poesia beat eu tem uma predileção decidida pelo Lawrence Ferlinghetti e não me sai da cabeça o poema "Estou Esperando". Envio em anexo o scan desse poema publicado pela Folha de São Paulo há muitos anos atrás com tradução de Paulo Leminsky que é primorosa, mas não a encontrei na Internet (existe uma versão de outro tradutor) . Veja também o link abaixo. 


Eu mesmo já cometi alguns poemas no passado, mas joguei fora numa hora do desespero desse labor ingrato. Fiz mais ou menos como Aristides Klafke que relatou:

Havia recebido o definitivo NÃO. 
Foi como um desabar de teto 
um abrir de comportas. 
Primeiro rasguei o pôster de Van Gogh 
atirei a gaveta de desenhos pela janela 
quebrei as pernas das cadeiras 
virei a casa ao avesso. 
Palpitavam veias em minha mente 
vozes tremulavam em meus ouvidos 
e meu sangue fervia, fervia. 
Esmurrei o antigo espelho da família 
e me vi tomado, transtornado, a navalha 
de meu pai na mão. E foi todo, tudo muito rápido: 
em nome de uma simetria que não alcanço 
compreender, cortei ambas as orelhas.  


Um comentário:

  1. A palestra do Wolf Hornk, em 04/05/2021, sediada pela biblioteca do CIC, via on LINE, foi ótima. Ele falou sobre a exclusão dos imigrantes e o apoio à ideologia nazista, no período anterior ao Terceiro Reich. Sobre a escola pós guerra e os castigos corporais.
    Falou sobre a Revolução Cubana, sobre o movimento estudantil de 1968.
    E os alunos leram o conto de autoria dele "A freira de Blumenau" que se passa em 1969 e se reporta a uma convenção nazista com a presença do Hitler (conto ficcional, é claro).

    Esse conto faz parte da Coletânea Tudo poderia ser diferente. Ed Insular.

    ResponderExcluir

Oficina de Leitura reflexiva do texto para teatro O crush da professora "Z" Maria de Edna Domenica Merola

 26/04/2022   O crush da Professora “Z” Maria   Tendo por chave o Teatro do Absurdo, relembro A Cantora Careca , de Ionesco, e pre...