O ciclo de encontros entre leitores e escritores, on line, começou em 06/04/2021, com a presença da jornalista Brígida Poli.
Saiba algo sobre ela, lendo nossa entrevista:
https://aquecendoaescrita.blogspot.com/2019/06/nova-producao-de-ema-brigida-de-poli_13.html
Para os alunos inscritos no curso do CIC, disponibilizamos os textos que serão objeto das interações da primeira aula.
Brígida De Poli
(Florianópolis – Brasil)
1° dia
2° dia
Estou vendo pela janela aquele velhinho do outro apartamento. Ele vai
carregando o lixo. Vai devagar, encurvadinho. Precisa andar bastante, pois
o depósito dos detritos é láaa no início do condomínio. Acho que ele vive
sozinho. Sabe do que lembrei, meu querido? Dos velhinhos de Barcelona.
Quando cheguei na grande cidade espanhola aprendi de cara que pedir
informações era quase uma ofensa. A resposta era sempre ríspida. Tive a
ousadia de perguntar à recepcionista do hotel se as lojas ficavam abertas
aos domingos. “Por supuesto que NO! En su país las tiendas se quedan
abiertas aos domingos?!! Nem respondi que “sí, se quedan” para não atiçar
ainda mais a ira da criatura.
Ainda não existiam os maravilhosos smartphones, onde uma breve pesquisa
nos esclarece tudo. Um dia, meio perdida, me aproximei de alguns velhinhos
sentados no banco da praça. Traumatizada, pedi informação cheia de medo.
Eles foram amáveis, solícitos em tentar entender meu portuñol. Logo percebi
que eram todos assim. Passei a fazer dos viejitos o meu oráculo. Já puxava
outros assuntos, conversávamos e ríamos. Entendi que o banco da praça
era o seu lugar de encontrar outras pessoas, de ter com quem falar, de ver
a vida acontecendo. Ah, sei que já te contei esta histórias mil vezes, né, meu
amor?
Mas assim que li que a Espanha é um dos países mais atingidos pela peste,
com isolamento social obrigatório, pensei logo nos meus amigos ancianos.
Morreram milhares, outros estão trancados em casa. Não podem mais
sentar no banco das praças, perderam seu porto anti-solidão. Meu coração
fica apertadinho de compaixão e choro por eles, até ficar com “o coração
amolecido como figo em calda”.
3° dia
Sabe, meu amor, hoje vi uma mulher indo e a outra vindo no corredor que
liga os prédios no condomínio. Parei o que estava fazendo e me amparei
no peitoril para observar melhor o que ia acontecer. Me senti como aquelas
vizinhas fofoqueiras que quase caem da janela para cuidar da vida dos
outros! Mas vi as duas se cumprimentarem de longe com um aceno de
cabeça e se afastarem ao máximo na hora de cruzarem uma pela outra. O
olhar acima das máscaras era de temor. Saíram caminhando rápido, cada
qual em direção ao seu destino.
Eu já as tinha visto várias vezes antes da peste e pareciam bem próximas.
Sempre se abraçavam, riam e conversavam no jardim, enquanto os filhos
brincavam ali por perto. Agora se evitam. Medo do contágio.
Não sei se te contei, querido, que li que um dos fatores decisivos para a
contaminação veloz e dizimadora da peste na Itália é o hábito dos abraços,
os almoços em família, as avós que cuidam dos netos. Triste imaginar que o
afeto pode trazer algum dano!
Talvez pelo meu DNA calabrês, adoro abraçar, você sabe. Mal vejo um amigo
do outro lado da rua já abro os braços. Você mesmo diz que eu pareço um
polvo ! Faz tantos dias que não ataco ninguém assim. Quanto tempo falta?
Quanto tempo falta? O que você acha? Ninguém responde.
4° dia
Bom dia, meu amor. Vi uma coisa tão engraçada na sacada do outro
apartamento hoje! Queria te contar logo. Sabe aquele homem enorme do
bloco em frente? Aquele mesmo, musculoso, com cara de ogro ? Pois eu o vi
pintando o cabelo da mulher dele! Passava o pincel delicadamente, mecha
por mecha! Enquanto eu pensava que ela devia ter tido muita persistência
para convencê-lo a fazer aquilo, já que a quarentena não permite salões de
beleza abertos... a mulher estendeu o pé e ele começou a pintar as unhas
dela! De vermelho! Fiquei hipnotizada vendo aquela cena, querido. O que
será que vai acontecer depois que tudo voltar ao normal (você crê que vai
voltar?)? Esses novos hábitos ficarão ou serão imediatamente esquecidos...
hã...sei lá, não sei... Fiquei rindo sozinha, imaginando que o vizinho, delegado
de polícia, possa se encantar com as novas atividades, trocar de profissão e
abrir um salão de estética! Hahahaha...
5° dia
Pandemia, coronavírus, Covid, quarentena, cloroquina, respirador, síndrome
respiratória, Sars, óbitos, OAS, psicopata, carreata, positivo, negativo, morte,
mortes, mais mortes... Não consegui dormir essa noite. Estas palavras
ficavam girando na minha cabeça. Pandemia, covid, mortes, mais mortes...
um círculo vicioso de palavras fazendo barulho na minha cabeça. Pandemia,
quarentena, isolamento, mortes, mais mortes... Meu amor, ajuda a silenciar
minha mente. Estou exausta. Exausta.
6° dia
Você me chamou? Ouvi uma voz e não vejo ninguém lá fora. Ai, acho que
a voz é minha! Já falava com as plantas, mas agora falo comigo mesma ?!
Olho para a tua foto na estante, meio envergonhada. Você me observa com
aquele olhar entre irônico e divertido. O que estarias pensando ?
- “Minha mulher é doida”, dirias, dando uma gargalhada !
- “Não gosto que riam de mim, você sabe”! Mas minha zanga só te faria rir
ainda mais.
Preciso te confessar uma coisa. Hoje, depois de tanto tempo, senti um certo
alívio por você não estar mais aqui. Pensei “ele não está passando por mais
este drama, por mais esta angústia. Você acreditava que era possível tornar
o mundo melhor, menos desigual. Fez a sua parte, foi à rua sem medo,
apesar das terríveis lembranças da prisão e do exílio. Quando parecia que,
enfim, havíamos alcançado nosso sonho... veio a roda viva e carregou nossas
esperanças pra lá. Você foi ficando cada vez mais calado, mais triste. E um
dia sem me avisar, seu coração parou. Agradeço aos deuses você ter sido
poupado desta peste, mas tua ausência me dá tanta saudades que chega
a doer. Fecho a janela para ninguém me ver chorar. Solidão enorme, do
tamanho daquela dos velhinhos das praças de Barcelona. Do porta-retrato
você me olha, calado, cheio de amor.
Fim
Parte I
DOIS
TEXTOS DA COLUNA CINE&SÉRIES –PORTAL MAKING OF
Cine&Séries: vírus, contágio,
epidemia, pandemia...
Confesso que relutei a entrar no tema, mas
acabei vencida pela obsessão que tomou conta do planeta diante do coronavírus.
E vamos combinar: é mesmo apavorante. Estamos quase monotemáticos, só falamos
da doença que começou na China e está se espalhando pelo mundo. Melhor se fosse
apenas um roteiro de filme, pois o cinema já se ocupou do assunto várias vezes.
Mas, infelizmente, não é.
Deixando o real para os cientistas, vamos ver
como a ficção retratou o terrível inimigo que a gente nem vê a olho nu e mesmo
assim pode dizimar populações. Vírus, epidemia, contágio, pandemia...tudo é
matéria-prima quando a intenção é mexer com os nervos do público. Produtores,
roteiristas e diretores usam e abusam do gosto da platéia por sentir medo.
Embora não morra de amores pelo tema,
selecionei alguns de que gosto bastante. Deixei de fora os de epidemias que
transformam as pessoas em zumbi. Mas há tantos outros que dá pra voltar a este
argumento sombrio outras vezes. Só espero que sem inspiração na vida real!
Boa leitura, bons filmes.
Até a próxima semana.
(Brígida
De Poli -Coluna Cine&Séries – Portal Making Of – 09/02/2020)
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Vai
encarar ?
Senta que lá vem
papo sério ! Precisamos continuar falando sobre o racismo, um assunto que não
se esgota na intensa cobertura televisiva sobre a morte do homem negro
assassinado por seguranças num supermercado, nem pelos ataques à vereadora
negra eleita em Joinville. O Brasil é o segundo país com a maior população negra
do mundo. Oitenta e seis milhões de brasileiros descendem de povos africanos.
Só perdemos em número para a Nigéria.
Algum
extraterrestre ou mesmo um estrangeiro desavisado ao ler essa estatística
pensaria que o Brasil é um bom lugar para negros viverem. Refugiados do
Haiti, Congo e Senegal escolheram nosso país com essa perspectiva. Chegando
aqui se depararam com algo que insistimos em negar ao longo dos séculos: o
preconceito racial.
Costumávamos
varrer o racismo para baixo do tapete. "Até tenho uma amiga negra" ,
"fulano é negro de alma branca", ou" não tenho nada contra, só
não gostaria que minha filha casasse com um negro" eram frases ditas com a
maior naturalidade.
Gerações que nos
antecederam tapavam o sol com a peneira e engavetavam um debate que só agora
está na berlinda. Ele chega num momento em que se contrapõem a maior
conscientização sobre o problema e a insatisfação de quem acha que é só mimimi
ou um "caso importado", como declarou o vice-presidente, Hamilton
Mourão.
É quase
inacreditável que justo agora quando abriram as portas do inferno e hackers
invadem lives de ativistas para usarem palavras de ódio, quando
qualquer um se acha no direito de chamar o outro de "macaco", quando
manifestações claras de racismo proliferam sem qualquer pudor, ainda haja a
negação do preconceito.
Digo QUASE porque,
infelizmente, estamos vivendo a era do negacionismo . Nega-se não só racismo,
como o machismo, o aquecimento global, as queimadas, o desmatamento e até a
doença que já matou mais de 170 mil brasileiros.
Quando eu era
criança e pensava enxergar fantasmas no escuro, fechava bem os olhos durante
alguns minutos para eles desaparecerem. Nossos governantes têm fechado os
olhos, mas tenho uma má notícia: nossos males são concretos. Não adianta fingir
que não existem. As manifestações de ódio racial estão aí cotidianamente para
quem tem um mínimo de informação. Sua negação é alimento para a violência
contra os negros.
Não quero dar
lição de moral a ninguém, mas precisamos admitir o racismo. É um assunto incômodo
? Sim, é, mas James Baldwin, escritor negro norte-americano, cujos livros me
ensinaram muito sobre preconceito racial, resumiu numa frase o que estou
tentando dizer: "você não consegue mudar o que não consegue
encarar."
Vai encarar?
(Brígida De Poli- 29/11/2020)
Parte II
POLI. As mulheres da minha vida. Insular, 2019 |
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