sexta-feira, 2 de abril de 2021

Leitores & Escritores: interações

 

O ciclo de encontros entre leitores e escritores, on line, começou em 06/04/2021, com a presença da jornalista Brígida Poli.

Saiba algo sobre ela, lendo nossa entrevista:

 https://aquecendoaescrita.blogspot.com/2019/06/nova-producao-de-ema-brigida-de-poli_13.html

Para os alunos inscritos no curso do CIC, disponibilizamos os textos que serão objeto das interações da primeira aula.


A MULHER NA JANELA
Brígida De Poli
(Florianópolis – Brasil)

1° dia
Olha só, querido, apenas agora que cheguei à janela e vi a quadra de
esportes do condomínio me dei conta do que estava sentindo falta. O
lugar está vazio! É da algazarra das crianças que sinto falta. Elas não estão
brincando, correndo, jogando bola e gritando como sempre faziam. Lembra
quando algum vizinho reclamava na assembléia de moradores do barulho
dos pequenos ? “A gritaria perturba meu sono da tarde”, diziam eles. E nós,
mesmo sem criança em casa, intervínhamos a favor delas. “ Gosto de ouvir
a algaravia dos meninos, até o grito aguuuudo das meninas. Me dá uma
sensação de vida, de alegria, de algo que se renova”, argumentava, enquanto
me olhavam como se eu fosse uma lunática.
Sabes que eu estava acostumada a fazer o trabalho de casa e a escrever
com aquele som ambiente. Desde ontem, com o início do confinamento, as
crianças estão proibidas de brincar lá fora. Não perturbam mais a siesta dos
moradores. Agora, só ouço o tec-tec do teclado do computador enquanto
escrevo. O resto é silêncio.

2° dia

Estou vendo pela janela aquele velhinho do outro apartamento. Ele vai
carregando o lixo. Vai devagar, encurvadinho. Precisa andar bastante, pois
o depósito dos detritos é láaa no início do condomínio. Acho que ele vive
sozinho. Sabe do que lembrei, meu querido? Dos velhinhos de Barcelona.
Quando cheguei na grande cidade espanhola aprendi de cara que pedir
informações era quase uma ofensa. A resposta era sempre ríspida. Tive a
ousadia de perguntar à recepcionista do hotel se as lojas ficavam abertas
aos domingos. “Por supuesto que NO! En su país las tiendas se quedan
abiertas aos domingos?!! Nem respondi que “sí, se quedan” para não atiçar
ainda mais a ira da criatura.
 Ainda não existiam os maravilhosos smartphones, onde uma breve pesquisa
nos esclarece tudo. Um dia, meio perdida, me aproximei de alguns velhinhos
sentados no banco da praça. Traumatizada, pedi informação cheia de medo.
Eles foram amáveis, solícitos em tentar entender meu portuñol. Logo percebi
que eram todos assim. Passei a fazer dos viejitos o meu oráculo. Já puxava
outros assuntos, conversávamos e ríamos. Entendi que o banco da praça
era o seu lugar de encontrar outras pessoas, de ter com quem falar, de ver
a vida acontecendo. Ah, sei que já te contei esta histórias mil vezes, né, meu
amor?
Mas assim que li que a Espanha é um dos países mais atingidos pela peste,
com isolamento social obrigatório, pensei logo nos meus amigos ancianos.
Morreram milhares, outros estão trancados em casa. Não podem mais
sentar no banco das praças, perderam seu porto anti-solidão. Meu coração
fica apertadinho de compaixão e choro por eles, até ficar com “o coração
amolecido como figo em calda”.

3° dia

Sabe, meu amor, hoje vi uma mulher indo e a outra vindo no corredor que
liga os prédios no condomínio. Parei o que estava fazendo e me amparei
no peitoril para observar melhor o que ia acontecer. Me senti como aquelas
vizinhas fofoqueiras que quase caem da janela para cuidar da vida dos
outros! Mas vi as duas se cumprimentarem de longe com um aceno de
cabeça e se afastarem ao máximo na hora de cruzarem uma pela outra. O
olhar acima das máscaras era de temor. Saíram caminhando rápido, cada
qual em direção ao seu destino.
Eu já as tinha visto várias vezes antes da peste e pareciam bem próximas.
Sempre se abraçavam, riam e conversavam no jardim, enquanto os filhos
brincavam ali por perto. Agora se evitam. Medo do contágio.
Não sei se te contei, querido, que li que um dos fatores decisivos para a
contaminação veloz e dizimadora da peste na Itália é o hábito dos abraços,
os almoços em família, as avós que cuidam dos netos. Triste imaginar que o
afeto pode trazer algum dano!
Talvez pelo meu DNA calabrês, adoro abraçar, você sabe. Mal vejo um amigo
do outro lado da rua já abro os braços. Você mesmo diz que eu pareço um
polvo ! Faz tantos dias que não ataco ninguém assim. Quanto tempo falta?
Quanto tempo falta? O que você acha? Ninguém responde.

4° dia

Bom dia, meu amor. Vi uma coisa tão engraçada na sacada do outro
apartamento hoje! Queria te contar logo. Sabe aquele homem enorme do
bloco em frente? Aquele mesmo, musculoso, com cara de ogro ? Pois eu o vi
pintando o cabelo da mulher dele! Passava o pincel delicadamente, mecha
por mecha! Enquanto eu pensava que ela devia ter tido muita persistência
para convencê-lo a fazer aquilo, já que a quarentena não permite salões de
beleza abertos... a mulher estendeu o pé e ele começou a pintar as unhas
dela! De vermelho! Fiquei hipnotizada vendo aquela cena, querido. O que
será que vai acontecer depois que tudo voltar ao normal (você crê que vai
voltar?)? Esses novos hábitos ficarão ou serão imediatamente esquecidos...
hã...sei lá, não sei... Fiquei rindo sozinha, imaginando que o vizinho, delegado
de polícia, possa se encantar com as novas atividades, trocar de profissão e
abrir um salão de estética! Hahahaha...

5° dia

Pandemia, coronavírus, Covid, quarentena, cloroquina, respirador, síndrome
respiratória, Sars, óbitos, OAS, psicopata, carreata, positivo, negativo, morte,
mortes, mais mortes... Não consegui dormir essa noite. Estas palavras
ficavam girando na minha cabeça. Pandemia, covid, mortes, mais mortes...
um círculo vicioso de palavras fazendo barulho na minha cabeça. Pandemia,
quarentena, isolamento, mortes, mais mortes... Meu amor, ajuda a silenciar
minha mente. Estou exausta. Exausta.

6° dia

Você me chamou? Ouvi uma voz e não vejo ninguém lá fora. Ai, acho que
a voz é minha! Já falava com as plantas, mas agora falo comigo mesma ?!
Olho para a tua foto na estante, meio envergonhada. Você me observa com
aquele olhar entre irônico e divertido. O que estarias pensando ?
- “Minha mulher é doida”, dirias, dando uma gargalhada !
- “Não gosto que riam de mim, você sabe”! Mas minha zanga só te faria rir
ainda mais.
Preciso te confessar uma coisa. Hoje, depois de tanto tempo, senti um certo
alívio por você não estar mais aqui. Pensei “ele não está passando por mais
este drama, por mais esta angústia. Você acreditava que era possível tornar
o mundo melhor, menos desigual. Fez a sua parte, foi à rua sem medo,
apesar das terríveis lembranças da prisão e do exílio. Quando parecia que,
enfim, havíamos alcançado nosso sonho... veio a roda viva e carregou nossas
esperanças pra lá. Você foi ficando cada vez mais calado, mais triste. E um
dia sem me avisar, seu coração parou. Agradeço aos deuses você ter sido
poupado desta peste, mas tua ausência me dá tanta saudades que chega
a doer. Fecho a janela para ninguém me ver chorar. Solidão enorme, do
tamanho daquela dos velhinhos das praças de Barcelona. Do porta-retrato
você me olha, calado, cheio de amor.

Fim

( Texto selecionado no concurso de textos para teatro Cenas do Confinamento/Escenas del Confinamiento - autores de vários países de língua portuguesa e espanhola. Publicado no e-book Cenas de Confinamento/2020).


Parte I

DOIS TEXTOS DA COLUNA CINE&SÉRIES –PORTAL MAKING OF

Cine&Séries: vírus, contágio, epidemia, pandemia...

Confesso que relutei a entrar no tema, mas acabei vencida pela obsessão que tomou conta do planeta diante do coronavírus. E vamos combinar: é mesmo apavorante. Estamos quase monotemáticos, só falamos da doença que começou na China e está se espalhando pelo mundo. Melhor se fosse apenas um roteiro de filme, pois o cinema já se ocupou do assunto várias vezes. Mas, infelizmente, não é.

Deixando o real para os cientistas, vamos ver como a ficção retratou o terrível inimigo que a gente nem vê a olho nu e mesmo assim pode dizimar populações. Vírus, epidemia, contágio, pandemia...tudo é matéria-prima quando a intenção é mexer com os nervos do público. Produtores, roteiristas e diretores usam e abusam do gosto da platéia por sentir medo.

Embora não morra de amores pelo tema, selecionei alguns de que gosto bastante. Deixei de fora os de epidemias que transformam as pessoas em zumbi. Mas há tantos outros que dá pra voltar a este argumento sombrio outras vezes. Só espero que sem inspiração na vida real!

Boa leitura, bons filmes.

Até a próxima semana.

(Brígida De Poli -Coluna Cine&Séries – Portal Making Of – 09/02/2020)

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Vai encarar ?

Senta que lá vem papo sério ! Precisamos continuar falando sobre o racismo, um assunto que não se esgota na intensa cobertura televisiva sobre a morte do homem negro assassinado por seguranças num supermercado, nem pelos ataques à vereadora negra eleita em Joinville. O Brasil é o segundo país com a maior população negra do mundo. Oitenta e seis milhões de brasileiros descendem de povos africanos. Só perdemos em número para a Nigéria.

Algum extraterrestre ou mesmo um estrangeiro desavisado ao ler  essa estatística pensaria que o Brasil é um bom lugar para negros viverem.  Refugiados do Haiti, Congo e Senegal escolheram nosso país com essa perspectiva. Chegando aqui se depararam com algo que insistimos em negar ao longo dos séculos: o preconceito racial.

Costumávamos varrer o racismo para baixo do tapete. "Até tenho uma amiga negra" , "fulano é negro de alma branca", ou" não tenho nada contra, só não gostaria que minha filha casasse com um negro" eram frases ditas com a maior naturalidade.

Gerações que nos antecederam tapavam o sol com a peneira e engavetavam um debate que só agora está na berlinda. Ele chega num momento em que se contrapõem a maior conscientização sobre o problema e a insatisfação de quem acha que é só mimimi ou um "caso importado", como declarou o vice-presidente, Hamilton Mourão.

É quase inacreditável que justo agora quando abriram as portas do inferno e hackers invadem lives de ativistas para usarem palavras de ódio, quando qualquer um se acha no direito de chamar o outro de "macaco", quando manifestações claras de racismo proliferam sem qualquer pudor, ainda haja a negação do preconceito.

Digo QUASE porque, infelizmente, estamos vivendo a era do negacionismo . Nega-se não só racismo, como o machismo, o aquecimento global, as queimadas, o desmatamento e até a doença  que já matou mais de 170 mil brasileiros.

Quando eu era criança e pensava enxergar fantasmas no escuro, fechava bem os olhos durante alguns minutos para eles desaparecerem. Nossos governantes têm fechado os olhos, mas tenho uma má notícia: nossos males são concretos. Não adianta fingir que não existem. As manifestações de ódio racial estão aí cotidianamente para quem tem um mínimo de informação. Sua negação é alimento para a violência contra os negros.

Não quero dar lição de moral a ninguém, mas precisamos admitir o racismo. É um assunto incômodo ? Sim, é, mas James Baldwin, escritor negro norte-americano, cujos livros me ensinaram muito sobre preconceito racial, resumiu numa frase o que estou tentando dizer: "você não consegue mudar o que não consegue encarar."

Vai encarar?

(Brígida De Poli- 29/11/2020)

 

 Parte II



POLI. As mulheres da minha vida. Insular, 2019










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