sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Oficina de Leitura reflexiva do texto para teatro O crush da professora "Z" Maria de Edna Domenica Merola

 26/04/2022

 

O crush da Professora “Z” Maria

 

Tendo por chave o Teatro do Absurdo, relembro A Cantora Careca, de Ionesco, e pretendo compartilhar minhas rflexões sobre um segmento de falas dos personagens Capitão e Senhor Martin.

Para representar a quase extinta ala utópica das reflexões, convoco a Professora “Z” Maria. Ela é da minha turma de amigas nascidas entre o final da década de 1940 e início de 1950, batizadas de Maria como segundo nome, professoras devotas de San Gennaro (um napolitano que morreu de emboscada!).

Chamo ainda a Sra. Dá Ares, só para dar um tom de malfadada verossimilhança à representação.

O segmento de falas alvo (uma do Capitão e outra do Sr. Martin), conforme escrito por Ionesco, consta a seguir:

CAPITÃO: Falo de minha própria experiência. A verdade, nada mais que a verdade. Nenhuma ficção.

SR. MARTIN: Isso mesmo. A verdade nunca é encontrada em livros, somente na vida.

Invento o que prossegue:

DÁ ARES: Há livros e livros. Na Bíblia, só há verdades. No entanto, nos livros escolares, principalmente os de História e de Sociologia, nunca a verdade é encontrada.

CAPITÃO: A minha própria experiência é propriedade exclusivamente minha. Não foi de outrem que me antecedeu.

PROFESSORA “Z” MARIA: Então, se nada ocorre por herança, posso concluir que o pai e a mãe do Capitão (com o devido respeito a ambos!) são personagens ficcionais?

CAPITÃO: Dá Ares, tem como exorcizar essa bruxa comunista?

DÁ ARES: Antes, vou tentar explicar. No mundo real existe experiência azul e experiência rosa. Já a vermelha é mera ficção.

PROFESSORA “Z” MARIA: Sr. Martin, se não existe verdade em nenhum livro, posso concluir que o senhor é ateu?

SR. MARTIN: Por favor, Capitão. Dá pra enquadrar essa Professora? Dá Ares, explica pra ela que não existe ficção no nosso gerenciamento e que experiência é técnica, é know how. Experiência não é concupiscência! (Sr. Martin olha com ar repreensivo para a Professora “Z” Maria.).

PROFESSORA “Z” MARIA: Caro Senhor Martin, a experiência poética também não é concupiscência. Vou apresentá-lo ao poema Transfusão (MEROLA, 2010).

 

          Teu corpo é aurora no campo orvalhado,

          é relva macia, é feno molhado,

          é favo de mel.

          É santuário de essência imortal,

          é depositário de fluído extrassensorial,        

          é início de uma escalada dolorida,

          é fim e princípio de vida.

          Teu corpo, moreno, é pôr do sol,

          é lusco-fusco vestido de translúcida fantasia,

          é convite para uma noite de orgia,

          é delicada concupiscência e estranha nostalgia.

 

          Teu corpo visto de longe... Tudo bem!

          Teu corpo sentido de perto é um vai e vem!

          Mas que estranha irradiação é essa

          que estonteia?

          Que doce troca magnética é essa

          que se esparge?

          Só sei que, de repente,

          frio e calor tornam-se morno,

          verde e amarelo dão azul...

          E, na dança de dois corpos,

          funde-se uma aura unicolor.

 

SR. MARTIN: Dá Ares, tem como dar um jeito nessa messalina comunista?

DÁ ARES: Amigos, a Professora “Z” Maria usa roupa de cor vermelha. O vermelho é de esquerda! A esquerda é do demônio.

SR. MARTIN (interrompendo Dá Ares): Logo, a Professora “Z” Maria é do... (aponta para o público)

DÁ ARES: É do... Vamos participar! (aponta para o lado direito da plateia). Aqui, todos da ala direita!

CAPITÃO: É do... (faz gesto de arma apontada). Se não completar vai se danar! (aponta para um grupo específico do público).

PROFESSORA “Z” MARIA: Capitão, Sr. Martin, Dá Ares, deixem de me tratar como morta. Deixem de falar sobre mim e falem comigo. Não há nada mais eficaz pra deprimir alguém do que lhe dizer (ainda que sem palavras) que ela não está presente, que não existe. Li no livro do Buber que isso se chama desconfirmação.  Mas, antes de ler, já havia experimentado na própria pele.

Eu reivindico ao menos uma oposição. Que possamos dizer um ao outro: “eu tenho minhas experiências, você tem as suas, se elas sintonizarem é ótimo, senão, nada há a fazer”.

DÁ ARES: Capitão, tem como prender essa bruxa anarquista?

PROFESSORA “Z” MARIA: Dá Ares, você precisa de ajuda especializada. Experimentou certas situações no passado que hoje a impedem de participar da experiência compactuada. Chamamos a experiência compactuada de realidade. Por exemplo: a fórmula da água é H2O.

CORO (Capitão, Sr. Martin, Dá Ares): É nada! Isso é tudo fake da esquerda!

DÁ ARES: Eu tive uma experiência na árvore!

CAPITÃO, SR. MARTIN: Todos os brasileiros de bem são testemunhas de que você teve uma experiência na árvore!

PROFESSORA “Z” MARIA: As narrativas tais como os mitos fundadores fazem parte da realidade compartilhada, mas que um dia foram ficcionais.

DÁ ARES: Mito fundador é coisa de cumunista! A mitologia grega é de esquerda. Acupuntura, ioga, Reik, constelação familiar, dieta vegana é tudo de esquerda. O comunismo começou com a Revolução Francesa, liderada por Eugène Ionesco...

SR. MARTIN (Interrompe Dá Ares. Pigarreia para pedir a vez de falar). A Professora “Z” Maria é uma mulher que deseja ter certas experiências!

DÁ ARES: Hunh, hunh! Na experiência da árvore, me foi revelado que ela teria um caso com esse tal de Ionesco. E que isso seria péssimo para o país.

CAPITÃO: Melhor prender esse Ionesco aí e essa professora daí!

 

Aspectos a considerar sobre o texto para teatro.

Edna Domenica Merola

 

O texto para teatro é escrito geralmente em prosa, apresentando enredo e personagens. Tem por função ser representado e por característica principal o diálogo entre os personagens (discurso direto), pressupõe a separação entre plateia e palco, mas utiliza linguagem dialógica. Apresenta um conflito que será resolvido no decorrer dos diálogos verbais e gestuais.

Seus elementos são: tempo, espaço e personagens.

O tempo teatral compreende o tempo real ou da representação, o tempo dramático ou dos acontecimentos narrados, e o tempo da escrita.

O espaço em teatro trata do espaço cênico ou da representação, por um lado, e do espaço dramático ou local em que se passam os fatos narrados pelos personagens.

Os personagens dos textos teatrais são: protagonistas, secundários e figurantes.

 

Referência

Daniela Diana. Texto Teatral. Disponível em

https://www.todamateria.com.br/texto-teatral/

 

Questões para reflexão

Qual é a tônica do diálogo entre os personagens? No texto há hierarquização de personagens (protagonistas, secundários e figurantes)?

Qual é o espaço dramático de O crush da professora "Z" Maria?

Em quais aspectos o espaço cênico pode ser visto como tribuna?

 

O que a intertextualidade em O crush da Professora“Z” Maria pode evocar em relação ao tempo da escrita, ao tempo  dramático e à veracidade do caso entre a professora (personagem) e o dramaturgo francês Ionesco (que como personagem é inexistente)?

 

“Há muitas formas de um texto se referir a outro: paródia, pastiche, eco, alusão, citação direta e paralelismo estrutural. Alguns teóricos acreditam que a intertextualidade é a própria condição da literatura – que todos os textos são tecidos com os fios de outros textos, independente de seus autores estarem ou não cientes.” (LODGE, 2011, p. 107).

A intertextualidade implícita exige um esforço maior de análise do leitor que  não recebe informações sobre o texto fonte. Já na intertextualidade explícita, há indicação da fonte.

 

Referência

LODGE, David. A arte da ficção. Trad Bras Guilherme da Silva Braga. L&PM Pocket, 2011.

 

Você considera esse texto cômico, trágico ou tragicômico?

 

A tragicomédia foi amplamente difundida no teatro clássico, e caracteriza-se pela combinação de elementos dramáticos e cômicos.

O lado cômico da tragicomédia expressa rejeição, mostrando algo com deboche, recorre à paródia, na qual recria-se um personagem ou um fato de maneira grotesca.

Na Grécia Antiga, a tragicomédia utilizava o coro para comentar as cenas e representar o público na participação da peça teatral.

Geralmente há um herói que age em prol da justiça social e depois de muito sofrimento tem um final é feliz.


Referência

Editorial QueConceito. São Paulo. Disponível em:

 https://queconceito.com.br/tragicomedia. Acesso em: [21/02/2022]


sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Entre quatro paredes. Edna Domenica Merola

Ele bateu à porta por volta das 18 horas. Ela não abriu. Mesmo se tratando de um condomínio com portaria 24 horas, ela ponderou que pudesse ser um estranho.

 

A senhora perguntou quem era e o que ele queria. Uma voz que não transmitia conforto respondeu que era o vizinho e que vinha para perguntar se ela fazia uso de incenso e se arrastava cadeiras.

 

Foi então que ela abriu a porta, exibiu seus cabelos brancos, sua bengala e (por que omitir?) certa vitalidade na comunicação.

 

Disse-lhe que a bengala, com certeza, fazia barulho, que dormia bem e que portanto os ruídos seriam ouvidos apenas durante o dia, mas que continuariam ocorrendo já que não podia prometer que sua fada madrinha iria fazê-la acordar, no dia seguinte, sem as limitações das quais padecia.  

 

Quanto ao incenso, respondeu ao moço que não usava (nem acendia velas), que não praticava nenhum ritual no apartamento. 

 

Acrescentou ter ouvido queixas de outros moradores em relação a cheiro de maconha. Perguntou se as suspeitas dele sobre o uso de incenso se dirigiam a "fumantes". Ele disse que sim.

 

Nessa altura, ela pôs a cara em direção ao corredor e ergueu a voz ao dizer:

- Não uso maconha, à revelia de que poderia fazê-lo, já que tal uso tem indicação para artrose, doença crônica da qual sofro.

 

A idosa prosseguiu com seu discurso indignado. Mas, quanto mais ela falava, mais o moço repetia suas acusações. Da soleira da porta do apartamento dela, o estranho podia ver uma mesa com quatro cadeiras na sala. Apontou a que ficava na posição tal que quem nela sentasse ficaria de costas para a porta, indicando que o barulho partia de lá. 

Ela respondeu que nunca sentava daquele lado.

 

Quando ele foi embora, ela aquilatou que falara demais. Com seus blefes, o caçador aumentara os informes sobre sua caça.

Entre pensamentos esparsos da idosa, foram aparecendo novas perspectivas sobre a cena do visitante indesejado. Cada vez que ela passava perto das cadeiras ao redor da mesa, imaginava como seria recobrar o vigor para batê-las com força no chão.

 

E o hábito de bater talheres na louça, por que nunca tinha tido, durante toda a vida? Ainda poderia adquiri-lo...

 

E mesmo estando sozinha nas refeições, poderia gritar:

 

- Passa o sal, por favor!

 

Ou melhor:

 

- Porra meu, passa esse sal logo!

 

Superada a fase de refletir sobre comportamentos, novos sentimentos sobre o outro foram aflorando.

 

O primeiro foi o de indignação por ter sido tachada injustamente de maconheira. O segundo foi o medo de que o estranho vizinho traçasse planos de vingança pela falta de receptividade por ela sinalizada. Indignação e medo redundaram na instalação da presença invisível e dominadora do novo vizinho em sua sala, em seu apartamento, em sua vida. Em pouco tempo, consolidou-se a sensação de sobreviver num território invadido. Passara a ser sem pátria dentro de sua própria casa!

 

Teve necessidade de se voltar para fora: conviver com o campo visual dado pela varanda. Tratava-se de um cenário verde a que todos deveriam ter direito...

 

Começou a reparar: havia sim um cheiro de queimado que vinha pela sacada do apartamento. Passou a procurar insistentemente por quem se dispusesse a localizar quem queimava lixo no bairro.

 

Desgastou-se. 

 

Para tentar superar, passou a coletar frases de auto ajuda. Muitas giravam em torno de “o inferno são os outros”. Muitas deturpavam o sentido da tal frase colhida da boca de um personagem da peça "Entre quatro paredes" escrita por Sartre no final da chamada segunda guerra do século XX, na qual o inferno é uma sala sem espelhos onde os condenados só podem se ver por meio dos olhos dos outros. 

E foi naquele mundo de auto ajuda que ela viveu, longe de seu vizinho, até o 

FIM

 

Caro leitor, cara leitora, responda a quem narra esta história: "tal política de vizinhança causará a extinção do planeta Terra?"

 

Oficina de Leitura reflexiva do texto para teatro O crush da professora "Z" Maria de Edna Domenica Merola

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