26/04/2022
O crush da Professora “Z” Maria
Tendo por chave o Teatro do Absurdo,
relembro A Cantora Careca, de Ionesco, e pretendo compartilhar minhas
rflexões sobre um segmento de falas dos personagens Capitão e Senhor Martin.
Para representar a quase extinta ala utópica
das reflexões, convoco a Professora “Z” Maria. Ela é da minha turma de amigas
nascidas entre o final da década de 1940 e início de 1950, batizadas de Maria
como segundo nome, professoras devotas de San Gennaro (um napolitano que morreu
de emboscada!).
Chamo ainda a Sra. Dá Ares, só para dar um
tom de malfadada verossimilhança à representação.
O segmento de falas alvo (uma do Capitão e
outra do Sr. Martin), conforme escrito por Ionesco, consta a seguir:
CAPITÃO: Falo de minha própria
experiência. A verdade, nada mais que a verdade. Nenhuma ficção.
SR. MARTIN: Isso mesmo. A verdade nunca é
encontrada em livros, somente na vida.
Invento o que prossegue:
DÁ ARES: Há livros e livros. Na Bíblia, só
há verdades. No entanto, nos livros escolares, principalmente os de História e
de Sociologia, nunca a verdade é encontrada.
CAPITÃO: A minha própria experiência é
propriedade exclusivamente minha. Não foi de outrem que me antecedeu.
PROFESSORA “Z” MARIA: Então, se nada
ocorre por herança, posso concluir que o pai e a mãe do Capitão (com o devido
respeito a ambos!) são personagens ficcionais?
CAPITÃO: Dá Ares, tem como exorcizar essa
bruxa comunista?
DÁ ARES: Antes, vou tentar explicar. No
mundo real existe experiência azul e experiência rosa. Já a vermelha é mera ficção.
PROFESSORA “Z” MARIA: Sr. Martin, se não
existe verdade em nenhum livro, posso concluir que o senhor é ateu?
SR. MARTIN: Por favor, Capitão. Dá pra
enquadrar essa Professora? Dá Ares, explica pra ela que não existe ficção no
nosso gerenciamento e que experiência é técnica, é know how. Experiência
não é concupiscência! (Sr. Martin olha com ar repreensivo para a Professora “Z”
Maria.).
PROFESSORA “Z” MARIA: Caro Senhor Martin, a experiência poética também não é concupiscência. Vou apresentá-lo ao poema Transfusão (MEROLA, 2010).
Teu
corpo é aurora no campo orvalhado,
é
relva macia, é feno molhado,
é
favo de mel.
É
santuário de essência imortal,
é
depositário de fluído extrassensorial,
é
início de uma escalada dolorida,
é
fim e princípio de vida.
Teu
corpo, moreno, é pôr do sol,
é
lusco-fusco vestido de translúcida fantasia,
é
convite para uma noite de orgia,
é
delicada concupiscência e estranha nostalgia.
Teu
corpo visto de longe... Tudo bem!
Teu
corpo sentido de perto é um vai e vem!
Mas
que estranha irradiação é essa
que
estonteia?
Que
doce troca magnética é essa
que
se esparge?
Só
sei que, de repente,
frio
e calor tornam-se morno,
verde
e amarelo dão azul...
E,
na dança de dois corpos,
funde-se
uma aura unicolor.
SR. MARTIN: Dá Ares, tem como dar um jeito
nessa messalina comunista?
DÁ ARES: Amigos, a Professora “Z” Maria
usa roupa de cor vermelha. O vermelho é de esquerda! A esquerda é do demônio.
SR. MARTIN (interrompendo Dá Ares): Logo,
a Professora “Z” Maria é do... (aponta para o público)
DÁ ARES: É do... Vamos participar! (aponta
para o lado direito da plateia). Aqui, todos da ala direita!
CAPITÃO: É do... (faz gesto de arma
apontada). Se não completar vai se danar! (aponta para um grupo específico do
público).
PROFESSORA “Z” MARIA: Capitão, Sr. Martin,
Dá Ares, deixem de me tratar como morta. Deixem de falar sobre mim e falem
comigo. Não há nada mais eficaz pra deprimir alguém do que lhe dizer (ainda que
sem palavras) que ela não está presente, que não existe. Li no livro do Buber
que isso se chama desconfirmação. Mas,
antes de ler, já havia experimentado na própria pele.
Eu reivindico ao menos uma oposição. Que
possamos dizer um ao outro: “eu tenho minhas experiências, você tem as suas, se
elas sintonizarem é ótimo, senão, nada há a fazer”.
DÁ ARES: Capitão, tem como prender essa
bruxa anarquista?
PROFESSORA “Z” MARIA: Dá Ares, você
precisa de ajuda especializada. Experimentou certas situações no passado que
hoje a impedem de participar da experiência compactuada. Chamamos a experiência
compactuada de realidade. Por exemplo: a fórmula da água é H2O.
CORO (Capitão, Sr. Martin, Dá Ares): É
nada! Isso é tudo fake da esquerda!
DÁ ARES: Eu tive uma experiência na
árvore!
CAPITÃO, SR. MARTIN: Todos os brasileiros
de bem são testemunhas de que você teve uma experiência na árvore!
PROFESSORA “Z” MARIA: As narrativas tais
como os mitos fundadores fazem parte da realidade compartilhada, mas que um dia
foram ficcionais.
DÁ ARES: Mito fundador é coisa de cumunista!
A mitologia grega é de esquerda. Acupuntura, ioga, Reik, constelação familiar,
dieta vegana é tudo de esquerda. O comunismo começou com a Revolução Francesa,
liderada por Eugène Ionesco...
SR. MARTIN (Interrompe Dá Ares. Pigarreia
para pedir a vez de falar). A Professora “Z” Maria é uma mulher que deseja ter
certas experiências!
DÁ ARES: Hunh, hunh! Na experiência da
árvore, me foi revelado que ela teria um caso com esse tal de Ionesco. E que
isso seria péssimo para o país.
CAPITÃO: Melhor prender esse Ionesco aí e
essa professora daí!
– Aspectos a
considerar sobre o texto para teatro.
Edna Domenica
Merola
O texto
para teatro é escrito geralmente em prosa, apresentando enredo e personagens.
Tem por função ser representado e por característica principal o diálogo entre
os personagens (discurso direto), pressupõe a separação entre plateia e palco,
mas utiliza linguagem dialógica. Apresenta um conflito que será resolvido no
decorrer dos diálogos verbais e gestuais.
Seus
elementos são: tempo, espaço e personagens.
O tempo
teatral compreende o tempo real ou da representação, o tempo dramático ou dos
acontecimentos narrados, e o tempo da escrita.
O espaço
em teatro trata do espaço cênico ou da representação, por um lado, e do espaço
dramático ou local em que se passam os fatos narrados pelos personagens.
Os
personagens dos textos teatrais são: protagonistas, secundários e figurantes.
Referência
Daniela
Diana. Texto Teatral. Disponível em
https://www.todamateria.com.br/texto-teatral/
Questões para reflexão
– Qual é a tônica do diálogo entre os personagens? No texto
há hierarquização de personagens (protagonistas, secundários e figurantes)?
– Qual é o espaço dramático de O crush da professora
"Z" Maria?
– Em quais aspectos o espaço cênico pode ser visto como
tribuna?
“Há muitas formas de um texto se
referir a outro: paródia, pastiche, eco, alusão, citação direta e paralelismo
estrutural. Alguns teóricos acreditam que a intertextualidade é a própria
condição da literatura – que todos os textos são tecidos com os fios de outros
textos, independente de seus autores estarem ou não cientes.” (LODGE, 2011, p.
107).
A intertextualidade implícita
exige um esforço maior de análise do leitor que
não recebe informações sobre o texto fonte. Já na intertextualidade
explícita, há indicação da fonte.
Referência
LODGE, David. A arte da ficção.
Trad Bras Guilherme da Silva Braga. L&PM Pocket, 2011.
Você
considera esse texto cômico, trágico ou tragicômico?
A
tragicomédia foi amplamente difundida no teatro clássico, e caracteriza-se pela
combinação de elementos dramáticos e cômicos.
O
lado cômico da tragicomédia expressa rejeição, mostrando algo com deboche,
recorre à paródia, na qual recria-se um personagem ou um fato de maneira
grotesca.
Na Grécia Antiga, a tragicomédia utilizava o coro para comentar as cenas e representar o público na participação da peça teatral.
Geralmente
há um herói que age em prol da justiça social e depois de muito sofrimento tem
um final feliz.
Referência
Editorial
QueConceito. São Paulo. Disponível em:
https://queconceito.com.br/tragicomedia. Acesso em: [21/02/2022]
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