segunda-feira, 27 de setembro de 2021

Contar histórias: reinventar e ressignificar o texto original. Gilberto Motta.

Abertura com audição de Anjos Tronchos, Caetano Veloso

https://youtu.be/22gCVzU9WUY


Ler é acolher o outro, acolher o imaginário do outro, acolher, no imaginário do outro, o outro em que, graças à leitura, também nos tornamos.

Leonardo Tonus

 

O lugar de leitura

O gesto da alteridade, que subjaz o ato da leitura (e do ensino da literatura), requer um comprometimento que, em mão dupla, deve nos conduzir ao reconhecimento tanto de uma fragilidade como de uma superioridade: a nossa e a alheia. Muito se debate hoje acerca do “lugar de fala”, espaço discursivo de poder que conduz ao silenciamento das diversidades. Ora, [para Leonardo Tonus], tornou-se igualmente imprescindível interrogar o “lugar de leitura”, lugar social a partir do qual lemos o mundo e o mundo dos livros. Sem essa interrogação, não há como se pensar a literatura em seu comprometimento para com o outro.

Leonardo Tonus

https://www.revistaponte.org/post/lugar-leitura-literária-imaginário-alteridade-migrancia?fbclid=IwAR2UOZM-CTzpfpVUkKayxbgjb5eryJKRCNhNJxZJvvcq0B4lb1BxY6vaYsE


AQUÁRIOS ARTIFICIAIS

(Gilberto Motta – 2018)


“O que seria – fato concreto –, o certo? E o errado? Talvez até mesmo a desarmonia seja um “estado de estar”, de caminhar na contramão do real e da lógica da maioria”.

 Enquanto limpo o salão/refeitório da Casa Central, fixo o olhar no aquário imaginário que criei – terapia paupérrima de sobrevivência – e admiro os peixinhos no balé aquático de suas existências glub, glub.

Mais que admirar, contemplo aqueles seres exóticos.

Beleza extraordinária.

Deixo-me envolver pelo encanto e elegância de seus movimentos; a agilidade de uns, a calma de outros, em cores vivas e variadas. Permaneço absorto por alguns segundos.

Eternos segundos.

Viajo pelos bosques da imaginação.

A harmonia das formas, os olhares hipnóticos sem pálpebras, a geometria dos movimentos, a biodiversidade de espécies, de gêneros e comportamentos. Habitantes de um espaço fechado, cada um a seu modo, executando a dança da vida.

Por mais que eu evite pensamentos transcendentais, esbarro na ideia dos sentidos de mundo como um magnífico caleidoscópio de seres e coisas e na possível existência de um “Ser organizador”.

Talvez aquele que, em um dado espaço-tempo, dispôs a matéria e organizou aquilo a que chamamos natureza; e nela, os seres vivos e os inanimados.

Em meu aquário imaginário, como num filme mental, tudo parece fazer parte desta vertigem de imagens em perfeito sincronismo.

O acaso não teria chances de compor tão bela harmonia.

Na verdade, a vida é mesmo uma exata sinfonia.

Aqui, fora do aquário, a realidade é outra.

Algo distante e repleto de dúvidas humanas, mitigadas à exaustão. A praga pandêmica não dá trégua há anos e já não há covas o suficiente, nem cemitérios, nem oxigênio, apenas desesperança.

Um outro pensamento toma de assalto a minha cabeça: “...e se os peixes apenas estiverem repetindo o ciclo, o movimento contínuo por não saberem – desconhecerem – outra forma de agir e de viver?”

Penso, então, em liberdade.

O que seria – fato concreto –, o certo? E o errado?

Talvez até mesmo a desarmonia seja um “estado de estar”, de caminhar na contramão do real e da lógica da maioria.

Explico: antes de apenas seguir o ciclo (como os peixes em meu aquário imaginário), reflito sobre ter o direito e o poder de escolher pela desarmonia. Não seria este o sentido do livre-arbítrio moderno? A essência da liberdade de que falam as antigas escrituras?

Continuo estático.

Olhos fixos no aquário inventado.

Amplio a divagação:

“Assim como o animal irracional é seus impulsos, o homem/racional é a sua liberdade, o seu poder de julgar e escolher”.

Talvez a liberdade seja o maior dos bens.

Tudo o mais que pensamos possuir poderá se perder no próximo segundo.

A liberdade não. Permanecerá existindo em nossas conjecturas, em nossos pensamentos. Só a perderá se quiser, como fruto de uma escolha.

Súbito, um susto.

Ouço um barulho no lado de fora do imenso refeitório.

É a vaca Esperança, um ser acima do bem e do mal, que habita a nossa comunidade. Olhos enormes – com pálpebras –, ruminando em atitude zen. Pergunto-me se um dia alcançarei a paz e o equilíbrio da Esperança e se existirá mesmo uma jornada decisiva e desenhada para cada ser.

Até onde iremos com a ditadura do pensamento em busca do movimento transformador?

Percebo que há diferenças fundamentais entre os peixinhos e nós humanos.

Os peixes seguem em harmonia por não terem opções. Eu – e a comunidade – pensamos que as possuímos e, portanto, refletimos, julgamos, escolhemos, decidimos.

Sem estas potências, definitivamente não seríamos humanos. Assim como os peixinhos, há meses estamos isolados e protegidos aqui neste pé de serra.

Lá fora, o vírus ceifa milhares de vidas e a pandemia enlouquece o planeta.

Penso, agora, nos seres e em todas as coisas, nos dias e no amor essencial.

Sinto que seja a empatia que me leva a trocar de lugar com o outro, o meu semelhante.

Num milésimo de segundo, tenho o sentimento de que a escolha e o amor harmonizam e concretizam a opção pela desarmonia do mundo pandêmico lá de fora. O caos. Toc. Toc. Toc.

É a vaquinha Esperança batendo, delicadamente com os seus pequenos cornos, no vidro da janela. Ser de sapiência este bichinho; nem mais nem menos potência em cada pancada. Sinfonia acústica.

Já passa das 17h e não limpei metade do salão.

Desde o início do confinamento respondo pela harmonia e higienização de ambientes na comunidade. Isolados, vivemos imunes.

Contramão.

Desligo o aquário imaginário e sigo limpando tudo.

Levo comigo a impressão de uma derradeira piscadela daquele peixinho palhaço, bailando no alto esquerdo da caixa ilusória de vidro. Piscadela de “olhos sem pálpebras”.

Olhos hipnóticos, cúmplices.

Janelas da alma.

Um dia, quem sabe, depois que tudo isto passar, navegarei com eles rumo ao grande oceano.

                                                                     ***

 Sobre “Os Seis Passeios Pelos Bosques da Ficção”, livro de Umberto Eco

Texto referencial palestra Leitores & escritores: interações, 28/09/2021 – Gilberto Motta.

OS SEIS PASSOS PELOS BOSQUES DA FICÇÃO, 1984, reúne as seis conferências que Eco proferiu em 1993 na Universidade de Harvard, nas quais resolveu abordar os mecanismos que sustentam uma obra de ficção e, mais especificamente, sua leitura.


Ler um livro, seja ficcional ou acadêmico, pode ser uma das experiências mais singulares da existência humana. O hábito de decodificar mensagens subjetivas, de se entrelaçar em simbologias, de criar cenários imaginários nunca sequer pensados pelo autor, ao ler um texto, não é apenas enriquecedor e lúdico, mas também extremamente complexo.

O autor Umberto Eco, no primeiro texto “Entrando no bosque” de seu livro “Seis passeios pelos bosques da ficção”, clarifica tal processo e com isso acaba por esclarecer pontos fundamentais sobre como ocorre a compreensão de um texto.

Acerca desse tema, Eco enumera importantes conceitos como: leitor empírico, leitor modelo, autor empírico, autor modelo, narrador, cadência do texto e a importância do leitor ao tomar escolhas.

Mas afinal, como se dá essa relação aonde ambos criam universos complexos a partir de suas interpretações próprias?

É preciso refletir e  relacionar esses conceitos, de forma a esclarecer evidenciar algumas pistas  de que fala Eco.

Desenvolvimento: 

O autor, que começa seu texto demonstrando a fundamental importância do leitor, destaca que, muito além de ser importante para o processo de se contar uma história, este faz parte da mesma.

Para Eco, todo texto necessita que o leitor faça parte do seu trabalho em passar informações. Nesse sentido, narrativas que deixam mais espaços em branco, isso é tenham descrito menos coisas sobre seu universo, estimulam o leitor a imaginar, e se fazer parte da obra.

Eco, por meio de uma metáfora, descreve esse mesmo processo de participação do leitor como sendo similar a se perder num bosque, com liberdade de escolhas e múltiplas opções de caminho, com variadas opções de interpretação. Sobre isso, o autor, afirma que não raro escritores optam por deixar propositalmente seus leitores perdidos no bosque refletindo mesmo após o fim de uma obra.

Toda narrativa ficcional, segundo Eco, é por natureza rápida, pois, para construir um mundo complexo, com diversos acontecimentos e múltiplos personagens, não se pode dizer tudo sobre este, deixando espaços a serem preenchidos pelo leitor. Apesar disso, com uma passagem de Calvino, o autor comenta que a demora deliberada também tem seu espaço enquanto uma ferramenta para o escritor. Essa “demora” pode ser útil para gerar tensão e questionamentos, por vezes podendo dar tempo proposital para o leitor refletir e reparar uma sutileza. Nesse sentido temos explicitada também, a importância da cadência do texto( velocidade do texto) no processo de interpretação de um texto narrativo.

O teórico, ao falar sobre esses dois temas, compara trechos das obras “A estalagem assassina” e “Metamorfose” dos autores Carolina Invernizio e Kafka. Eco faz referência ao fato de que apesar de ambos serem textos narrativos rápidos, “Metamorfose” o faz de forma a deixar mais opções em aberto e dando mais possibilidades de interpretação ao leitor, enquanto que “A estalagem assassina”, apesar de veloz, é descritivo e delimita seu próprio universo, tirando do leitor parte dessa tarefa. Com isso, Eco demonstra que tanto a cadência do texto, quanto as lacunas que o autor deixa ,dependem da mensagem que aquele que escreveu o texto quis passar e de quem era seu público alvo.

O autor, após refletir acerca da importância do leitor no processo da leitura, estabelece que existam dois tipos de leitor:

O leitor empírico pode-se tratar de qualquer um quando lê um livro, vagando despretensiosamente pelo bosque da interpretação, e em geral utilizando o texto para projetar suas próprias paixões pessoais, provenientes da sua própria percepção e experiência e que podem ser inerentes ao texto narrativo ou não.

E o leitor modelo, é o tipo de leitor que a obra previra para preencher suas lacunas corretamente, e segundo Eco, esse leitor é criado a partir da própria obra.

Nesse sentido deve-se observar que tanto a velocidade do texto quanto outros recursos literários, bem como própria estrutura do texto em si induzem a formação desse leitor.

Para explicar o que cria o leitor modelo, Eco, expõe os conceitos de: autor empírico, autor modelo, diferenciando-os e demonstrando como esses se relacionam na interpretação de um texto narrativo.

O autor empírico, em muito se assemelha com o leitor empírico. Este pode ser interpretado como o lado mais pessoal, particular, do escritor. Para Eco, o autor empírico não tem lá muito interesse, o autor nos lembra de que é muito mais válido conseguir preencher corretamente as lacunas da interpretação de um texto narrativo, se aproximando do leitor modelo, do que saber aspectos pessoais da vida de seu autor.

Já o autor modelo pode ser entendido como um conjunto de recursos textuais, às vezes lógicos, às vezes de natureza simbólica, que acabam por formar uma estrutura e certos padrões capazes de serem reconhecidos como “regra”, que acabam por moldar e encaminhar as escolhas do leitor modelo em seu passeio por aquele bosque, isso é, aquele livro. É esse mesmo autor modelo que também molda o leitor empírico até que esse venha a perceber seus padrões de estilo e torne a se aproximar do leitor modelo.

O narrador, muitas vezes confundido com o autor empírico ou com o autor modelo, trata-se apenas de uma voz que pretende guiar o leitor através da narrativa textual. Apesar deste não se tratar do autor modelo em si, o narrador em alguns casos pode ajudar o autor modelo em sua função.


Portanto, para Umberto Eco, a relação do leitor com a obra além de fundamental é quase simbiótica. Para não se perder no bosque, você tem que ser um leitor, que siga as regras implícitas no texto, um leitor modelo. E leitores modelo, por sua vez, são formados e moldados por bons autores modelo e criados por boas obras.

Vivemos tempos de guerrilha semiológica superdimensionada; hiper oferta de conteúdos, dados, informações, etc. Mas tempo de quantidade, não qualidade. Que histórias contar? Como contar? A ressignificação  da forma de ler determina os desafios das formas diferenciadas de escrever, como bem percebeu Eco.

 

Oficina de Leitura reflexiva do texto para teatro O crush da professora "Z" Maria de Edna Domenica Merola

 26/04/2022   O crush da Professora “Z” Maria   Tendo por chave o Teatro do Absurdo, relembro A Cantora Careca , de Ionesco, e pre...