De Absinto Pioneiro a Lara Pia
Edna Domenica Merola (1)
Esta é uma história bem brasileira circunscrita sob a máxima:
– Sabe com quem você está falando?
A narrativa desta saga começa em 1873,
com a fundação de um pequeno povoado que outrora fora reconhecido pelo nome do
rio em torno do qual se fixaram os pioneiros.
Dentre os prováveis fundadores está
(segundo ele próprio) Absinto Machado de Alencar, primo de José de Alencar. Por
esse motivo passa a se apresentar como Absinto Pioneiro Machado de
Alencar. Por ser politicamente correto, posteriormente,
sugere às demais autoridades que o local seja chamado pelo nome de um músico
brasileiro, já que é de bom tom valorizar as artes nacionais, em especial a
ópera.
Absinto Pioneiro sugere ainda que a
data oficial para celebrar a fundação da localidade seja o dia 16/02/1873, data
da apresentação da ópera Fosca, de Carlos Gomes.
Por mérito e esforço pessoal, o
pioneiro consegue articular o necessário cartucho para
averbar o nome da cidade ao próprio. Em nove de novembro de 1889, o fazendeiro
Absinto Pioneiro Machado de Alencar vai ao último baile do império (na Ilha
Fiscal) e pede a um assessor de D. Pedro II a autorização para incorporar o
nome do município ao seu nome e da família, sendo atendido na véspera da
proclamação da República. Ou seja, em catorze de novembro de 1889, passa a se
chamar Absinto Pioneiro Machado de Alencar Carlos Gomes.
Passam-se anos marechais... Passam-se
décadas republicanas até que, em 24 de outubro de 1930, o jornalista José
Machado de Alencar Carlos Gomes (sobrinho de Absinto Pioneiro) noticia na
Gazeta de Carlos Gomes o Golpe de estado, e o fim da República Velha.
Em 19/08/1943, na biblioteca de Carlos
Gomes, em solenidade comemorativa do centenário do conto O gato preto de
Edgar Alan Poe, o vereador Absinto Machado de Alencar Carlos Gomes é avisado de
que sua mulher está dando à luz os gêmeos Esaú Absinto e Jacó Absinto.
No dia seguinte, em páginas diferentes
da Gazeta de Carlos Gomes são noticiadas as atrocidades da
Segunda Guerra do século XX e o nascimento dos dois bisnetos de Absinto
Pioneiro Machado de Alencar Carlos Gomes.
Em 1950, os gêmeos entram na escola e
vão ser colegas de Curvelo de Assis. Lembram-se dele? Devem lembrar-se porque,
cedo ou tarde, todos percebem que suborno e delação são frequentes, que cada um
tem seu preço, e que muitos acabam se vendendo.
Em vinte e quatro de agosto de 1954, no
mesmo instante em que foi noticiada, pelo rádio, a trágica morte do presidente,
o prefeito de Carlos Gomes – Absinto Machado de Alencar Carlos Gomes – é
avisado de que sua mulher está dando à luz a menina Maria Alzira Vargas de
Alencar Carlos Gomes.
Em vinte e um de abril de 1960, a família
Carlos Gomes comparece à solenidade da fundação de Brasília. Nesse mesmo ano,
os gêmeos votam pela primeira vez.
Em 1962, Esaú Absinto e o irmão gêmeo
Jacó Absinto apaixonam-se por Flora de Assis que morre de amor, precocemente.
Na noite após a missa de sétimo dia, Esaú Absinto tem um sonho que considera um
chamamento e entra para o seminário. Jacó Absinto apoia-se em colegas e formam
uma banda de rock.
Em 31/03/1964, ocorre um golpe militar,
no Brasil. Após esse evento, Esaú Absinto Machado de Alencar Carlos Gomes deixa
o seminário, termina a graduação em Filosofia e vai morar em Paris.
Em 16/02/1973, Esaú Absinto retorna ao
Brasil para a solenidade de comemoração do Centenário de Carlos Gomes. Após o
evento, numa excursão nacional, conhece a bela Iracema de Alencar e mantém com
ela um namoro. Em 16/02/1975, casam-se e vão morar em Brasília.
Em janeiro de 1980, Esaú Absinto
retorna para Carlos Gomes com a esposa Iracema que dá à luz uma menina e falece
logo em seguida. Um nascimento, em 01/02/1980, um enterro em 02/02/1980... Mas
Jacó Absinto (por direito de padrinho) escolhe o nome da sobrinha, batizando-a
de Lara Pia. Escolhe Lara, em homenagem à personagem do
filme Doutor Jivago, e Pia – feminino de pio – que
como adjetivo quer dizer benigna, para levantar o astral da criança
frente às circunstâncias negativas de seu nascimento.
Mas, logo ao entrar na escola, Lara Pia
descobre que seu nome é objeto de trocadilho em referência a alguns membros de
sua família serem responsáveis por alguma negociata larápia, algum crime do
colarinho branco, algum uso de informação privilegiada. Tais injustiças deixam
a menina traumatizada, até ser curada num grande templo por obra de uma líder
religiosa versada em transportes corporais de dólares para o
exterior.
No final de 2014, encontramos os gêmeos
morando novamente no antigo solar da família. Jacó está divorciado e não teve
filhos. Esaú está viúvo e a única filha dele deixou a próspera Carlos
Gomes.
Os deputados federais eleitos em 2014
para o mandato 2015–2018 tomam posse em 01/02/2015, e junto com eles está Lara
Pia Carlos Gomes. Em 2016, seus 366 coleguinhas e mais Lara Pia votam a favor
do impeachment da presidente.
Lara Pia se reelege e continua a
expandir seu rol de amizades. Em junho de 2019, Lara Pia ajuda uma colega
deputada a contratar o funcionário ideal para resolver uma pendenga conjugal
que demandava pulso firme, boa mira e fé (muita fé) no gatilho! Sobre a
solidariedade de Lara Pia ninguém fica sabendo, já o mesmo não acontece com
Flordelei. Porém o que conta mesmo é a imunidade prisional a parlamentares e o
apoio da igreja. Afinal, é tudo obra do diabo!
Três dos cinco empregados do velho
solar morrem de Covid 19, em 2020, deixando órfãos que a família Machado de
Alencar Carlos Gomes ignora.
No início de fevereiro de 2021, os
gêmeos Esaú Absinto e Jacó Absinto furam a fila da vacina contra o COVID 19.
Graças à lei do Gerson, sobrevivem.
Em 19/08/2043, em meio às comemorações
do bicentenário do conto de terror O Gato Preto, em dupla homenagem
a Edgar Allan Poe e aos estudos da psicologia da culpa – os
habitantes de Carlos Gomes testemunham uma dupla eutanásia: a dos gêmeos Esaú
Absinto e Jacó Absinto.
De resto, só sei que foi assim que
a saga da família Machado de Alencar Carlos Gomes reuniu fatos históricos,
musicais, literários, parlamentares... Sem culpa... pela aderência
aos duplos malignos: concentração de renda e injustiça social; injustiça social
e uso da coisa pública como se fora privada; uso da coisa pública como se fora
privada e delação premiada; delação premiada e imunidade prisional
parlamentar, imunidade prisional parlamentar e concentração de renda... Num
círculo vicioso.
– Tudo poderia ser diferente?
(1) Edna Domenica Merola publicou livros que
mesclam textos literários e explanações sobre aspectos metodológicos de
realização de oficinas de escrita criativa: Aquecendo a Produção na Sala de
Aula (Nativa, 2001), De que são feitas as Histórias (Postmix, 2014); Diálogos
da maturidade (Postmix, 2016); Relógio de Memórias (Postmix, 2017). Escreve
poemas: Cora, Coração (Nova Letra, 2011) e contos e crônicas: A Volta do
Contador de Histórias (Nova Letra, 2011); No Ano do Dragão (Postmix, 2012); As
Marias de San Gennaro (Insular, 2019. No prefácio da coletânea Tudo poderia
ser diferente, resume o texto: "De Absinto Pioneiro a Lara Pia toma
por referência o conto O Gato Preto, de Poe, para narrar a saga de
uma família que exerce dupla maldição sobre o povo: enriquecimento
ilícito e trato do patrimônio público, inclusive imaterial, como se fosse
privado. "
REFERÊNCIAS
MEROLA, E. D. De Absinto Pioneiro a
Lara Pia. In Tudo poderia ser diferente, Amazon Kindle, 2022 (e-book).
Sobre o texto a
coletânea Tudo poderia ser diferente. Disponível em
https://palavradejulinhadaadelaidesoledad.blogspot.com/2022/01/sobre-coletanea-tudo-poderia-ser.html
Informes sobre aquisição de As Marias
de San Gennaro. Disponível
em https://insular.com.br/produto/as-marias-de-san-gennaro/
"De Absinto Pioneiro a Lara
Pia": anotações ligeiras de Antonio Gil Neto (2)
Logo de cara já senti que viria uma
saga. O “de” - “a” me levou direto a esse movimento. Já senti uma sensação
interessante de que estava por assistir no fluir das palavras a uma ópera meio
burlesca e extrememente dinâmica e visual. Nela, as personagens se
misturariam cantando e falando em cenários se multiplicando e desenhando aos
nossos olhos leitores o desenrolar dos tempos.
Acho que assim foi.
A história se afirmou de imediato e se
confirmou na frase emblemática: “Sabe com quem está falando?” O que confere tom
e sentido no desenrolar dos fatos que se costuram e se afirmam na permanência
da prepotência e manutenção de poder a qualquer custo.
As cenas se sucedem rápida e
intensamente com riqueza de referências históricas e contextos da vida
brasileira.
As personagens perpassam em nossa
leitura imaginativa trazidas indelevemente por um tom crítico e por vezes com
humor fino e delicada ironia. Um jeito de desvelar aos leitores os
acontecimentos passados que evocam o presente e apontam o futuro.
Para mim, o narrador não é neutro. É
perpicaz e inspirador. Apresenta-se nítido no palco da narrativa com sua voz e
vez. É seu jeito de trazer a História aos nossos olhos e corações.
(2) Antonio Gil Neto é poeta e
educador. Autor de livros de literatura juvenil: “A flor da pele” e
“Cartas Marcadas”, (Ed. Cortez/SP) e também organizador e autor de “A memória
brinca: ciranda de histórias do ensino municipal paulistano”, (Imprensa
Oficial/SP). No primeiro livro que escreveu – “Brado Retumbante”, (Ed.
Olho d’Água/SP) – teve a graça de receber na contracapa generosas palavras de
Paulo Freire. Participa da coletânea Tudo poderia ser diferente,
e-book Amazon Kindle, 2022.
REFERÊNCIAS
GIL, Antonio Neto. Roda de Poesia.
Disponível em https://pandoficina.blogspot.com/2021/10/roda-de-poesia-antonio-gil-neto.html
Sobre o autor da coletânea Tudo
poderia ser diferente. Disponível em
https://palavradejulinhadaadelaidesoledad.blogspot.com/2022/01/sobre-coletanea-tudo-poderia-ser.html
Informes sobre a aquisição da coletânea
Tudo poderia ser diferente. Disponível em
Comentários de Maria Regina
Chagas (3)
Eu ficaria muito feliz se o seu texto
se tratasse de uma lembrança, de algo que aconteceu muito longe
daqui. Algo que foi vivido e excluído da sociedade. Infelizmente essa
máxima" você sabe com quem está falando?" Continua vigente e
atualizada com seus adendos. Foi uma grande construção/desconstrução ao longo
do tempo, tão bem feita, que receio que muitos leitores tenham dificuldade
de fazer a ligação entre os diversos personagens elencados no texto! Foi
um belo exercício literário!
(3) Maria Regina Chagas é contista e
educadora. Autora de Elas, Sem Fronteiras, 2020.
REFERÊNCIA
Maria Regina Chagas. Disponível
em
Comentários de Marlene Xavier
Nobre (4)
O Brasil é lindo, mas carrega uma
triste sina:
– Sabe com quem está falando ?
– Eu sou o Fulano, me escondo do povo,
tiro proveito e me aproveito. Que se lixe a cultura popular e a
literatura. Finjo que sou bom moço, cuido do meu bolso! Enfrento cabra da
peste, pois este anda com o povo. Este ano promete! Não tenho
partido, atiro para todos os lados, em qualquer cidade. Curto motociata,
faço baderna, sou ignorante e obsecado pelo ódio. Quando Aquela pensava
em tirar o país da miséria, passamos por cima, demos um golpe
sujo... Kkkk... Foi aí que me tornei Presidente.
(4) Marlene Xavier Nobre é autora de A meus queridos
netos – cartas, Postmix, 2017; Lembranças e esperanças de uma
Mulher, Insular, 2020. Participou da Coletânea de poesias do Instituto de
Memórias, em 2019. Da antologia poética Vivara poesia livre, Ed
nacional, 2020. Das coletâneas: O mundo parou, Centenário de
Clarice Lispector, Natal, Reflexões de um pet, Apparere, 2020. Da
Coletânea de poemas, Apparere, 2021. E da coletânea Tudo poderia ser
diferente, Amazon, 2022.
REFERÊNCIAS
Marlene Xavier Nobre. Lembranças e
esperanças de uma mulher. Informes sobre aquisição disponível em https://insular.com.br/produto/lembrancas-e-esperancas-de-uma-mulher/
Sobre a autora da coletânea Tudo
poderia ser diferente Marlene Xavier Nobre. Disponível em
https://palavradejulinhadaadelaidesoledad.blogspot.com/2022/01/sobre-coletanea-tudo-poderia-ser.html
Comentários de Cássia Regina Batista (5)
"Esta é uma história bem brasileira circunscrita sob a
máxima:
– Sabe com quem você está falando?"
Assim começa o texto, com essa primeira frase do conto nos remete
a alguém que tem certeza do seu poder perante determinada situação, ou alguém
que tem uma profissão que o beneficia ou que o protege, quantas vezes ouvimos a
notícia de que algum crime não está sendo investigado da maneira como deveria e
ficamos intrigados pensando quem será que era? Será que era realmente alguém
tão poderoso e influente que nem a justiça pode tocar?
"Mas, logo a entrar na escola, Lara Pia, descobre que seu
nome é objeto de trocadilho..." essa parte do texto me fez sentir uma
leveza quase como se fosse um momento em que mesmo rodeados por corrupções e
fraudes possamos ver a vida de uma maneira onde sempre tenhamos algo em que nos
faça sorrir.
O conto é sobre a família que poderia ser qualquer família
influente, rica e poderosa, de qualquer região do país ou de quase qualquer
bairro daqui de Floripa. Essa família começou desde seus primeiros integrantes
a usar a influência e a política para tirar vantagem e organizar não as regiões
em que moravam, mas sim as suas vidas, isso me lembrou muito vereadores dos
nossos bairros, principalmente aqui do Rio Vermelho em que existem ruas que
foram lajotadas a anos e outras que ainda nem têm previsão, e olha que nem
estou falando das ruas clandestinas, pois muitas dessas foram lajotadas com o
dinheiro da Prefeitura (ou seja, nossos impostos).
Ao ler o título já fiquei imaginando a mulher Lara Pia, como seria
a sua vida. E ao finalizar o texto a autora deixa o questionamento: "– Tudo
poderia ser diferente?"
A minha resposta mais sincera é: espero que sim, espero que logo
tudo comece a ser diferente, no mundo, na política e principalmente nos nossos
bairros.
(5) Cássia Regina Batista é bibliotecária da Prefeitura Municipal de Florianópolis, fã de Harry Potter, apaixonadíssima por Romances de época e pela Feia mais bela, em amor total por Thabata (minha filha) e casada com Ivan.
REFERÊNCIA
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