sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Oficina de Leitura reflexiva do texto para teatro O crush da professora "Z" Maria de Edna Domenica Merola

 26/04/2022

 

O crush da Professora “Z” Maria

 

Tendo por chave o Teatro do Absurdo, relembro A Cantora Careca, de Ionesco, e pretendo compartilhar minhas rflexões sobre um segmento de falas dos personagens Capitão e Senhor Martin.

Para representar a quase extinta ala utópica das reflexões, convoco a Professora “Z” Maria. Ela é da minha turma de amigas nascidas entre o final da década de 1940 e início de 1950, batizadas de Maria como segundo nome, professoras devotas de San Gennaro (um napolitano que morreu de emboscada!).

Chamo ainda a Sra. Dá Ares, só para dar um tom de malfadada verossimilhança à representação.

O segmento de falas alvo (uma do Capitão e outra do Sr. Martin), conforme escrito por Ionesco, consta a seguir:

CAPITÃO: Falo de minha própria experiência. A verdade, nada mais que a verdade. Nenhuma ficção.

SR. MARTIN: Isso mesmo. A verdade nunca é encontrada em livros, somente na vida.

Invento o que prossegue:

DÁ ARES: Há livros e livros. Na Bíblia, só há verdades. No entanto, nos livros escolares, principalmente os de História e de Sociologia, nunca a verdade é encontrada.

CAPITÃO: A minha própria experiência é propriedade exclusivamente minha. Não foi de outrem que me antecedeu.

PROFESSORA “Z” MARIA: Então, se nada ocorre por herança, posso concluir que o pai e a mãe do Capitão (com o devido respeito a ambos!) são personagens ficcionais?

CAPITÃO: Dá Ares, tem como exorcizar essa bruxa comunista?

DÁ ARES: Antes, vou tentar explicar. No mundo real existe experiência azul e experiência rosa. Já a vermelha é mera ficção.

PROFESSORA “Z” MARIA: Sr. Martin, se não existe verdade em nenhum livro, posso concluir que o senhor é ateu?

SR. MARTIN: Por favor, Capitão. Dá pra enquadrar essa Professora? Dá Ares, explica pra ela que não existe ficção no nosso gerenciamento e que experiência é técnica, é know how. Experiência não é concupiscência! (Sr. Martin olha com ar repreensivo para a Professora “Z” Maria.).

PROFESSORA “Z” MARIA: Caro Senhor Martin, a experiência poética também não é concupiscência. Vou apresentá-lo ao poema Transfusão (MEROLA, 2010).

 

          Teu corpo é aurora no campo orvalhado,

          é relva macia, é feno molhado,

          é favo de mel.

          É santuário de essência imortal,

          é depositário de fluído extrassensorial,        

          é início de uma escalada dolorida,

          é fim e princípio de vida.

          Teu corpo, moreno, é pôr do sol,

          é lusco-fusco vestido de translúcida fantasia,

          é convite para uma noite de orgia,

          é delicada concupiscência e estranha nostalgia.

 

          Teu corpo visto de longe... Tudo bem!

          Teu corpo sentido de perto é um vai e vem!

          Mas que estranha irradiação é essa

          que estonteia?

          Que doce troca magnética é essa

          que se esparge?

          Só sei que, de repente,

          frio e calor tornam-se morno,

          verde e amarelo dão azul...

          E, na dança de dois corpos,

          funde-se uma aura unicolor.

 

SR. MARTIN: Dá Ares, tem como dar um jeito nessa messalina comunista?

DÁ ARES: Amigos, a Professora “Z” Maria usa roupa de cor vermelha. O vermelho é de esquerda! A esquerda é do demônio.

SR. MARTIN (interrompendo Dá Ares): Logo, a Professora “Z” Maria é do... (aponta para o público)

DÁ ARES: É do... Vamos participar! (aponta para o lado direito da plateia). Aqui, todos da ala direita!

CAPITÃO: É do... (faz gesto de arma apontada). Se não completar vai se danar! (aponta para um grupo específico do público).

PROFESSORA “Z” MARIA: Capitão, Sr. Martin, Dá Ares, deixem de me tratar como morta. Deixem de falar sobre mim e falem comigo. Não há nada mais eficaz pra deprimir alguém do que lhe dizer (ainda que sem palavras) que ela não está presente, que não existe. Li no livro do Buber que isso se chama desconfirmação.  Mas, antes de ler, já havia experimentado na própria pele.

Eu reivindico ao menos uma oposição. Que possamos dizer um ao outro: “eu tenho minhas experiências, você tem as suas, se elas sintonizarem é ótimo, senão, nada há a fazer”.

DÁ ARES: Capitão, tem como prender essa bruxa anarquista?

PROFESSORA “Z” MARIA: Dá Ares, você precisa de ajuda especializada. Experimentou certas situações no passado que hoje a impedem de participar da experiência compactuada. Chamamos a experiência compactuada de realidade. Por exemplo: a fórmula da água é H2O.

CORO (Capitão, Sr. Martin, Dá Ares): É nada! Isso é tudo fake da esquerda!

DÁ ARES: Eu tive uma experiência na árvore!

CAPITÃO, SR. MARTIN: Todos os brasileiros de bem são testemunhas de que você teve uma experiência na árvore!

PROFESSORA “Z” MARIA: As narrativas tais como os mitos fundadores fazem parte da realidade compartilhada, mas que um dia foram ficcionais.

DÁ ARES: Mito fundador é coisa de cumunista! A mitologia grega é de esquerda. Acupuntura, ioga, Reik, constelação familiar, dieta vegana é tudo de esquerda. O comunismo começou com a Revolução Francesa, liderada por Eugène Ionesco...

SR. MARTIN (Interrompe Dá Ares. Pigarreia para pedir a vez de falar). A Professora “Z” Maria é uma mulher que deseja ter certas experiências!

DÁ ARES: Hunh, hunh! Na experiência da árvore, me foi revelado que ela teria um caso com esse tal de Ionesco. E que isso seria péssimo para o país.

CAPITÃO: Melhor prender esse Ionesco aí e essa professora daí!

 

Aspectos a considerar sobre o texto para teatro.

Edna Domenica Merola

 

O texto para teatro é escrito geralmente em prosa, apresentando enredo e personagens. Tem por função ser representado e por característica principal o diálogo entre os personagens (discurso direto), pressupõe a separação entre plateia e palco, mas utiliza linguagem dialógica. Apresenta um conflito que será resolvido no decorrer dos diálogos verbais e gestuais.

Seus elementos são: tempo, espaço e personagens.

O tempo teatral compreende o tempo real ou da representação, o tempo dramático ou dos acontecimentos narrados, e o tempo da escrita.

O espaço em teatro trata do espaço cênico ou da representação, por um lado, e do espaço dramático ou local em que se passam os fatos narrados pelos personagens.

Os personagens dos textos teatrais são: protagonistas, secundários e figurantes.

 

Referência

Daniela Diana. Texto Teatral. Disponível em

https://www.todamateria.com.br/texto-teatral/

 

Questões para reflexão

Qual é a tônica do diálogo entre os personagens? No texto há hierarquização de personagens (protagonistas, secundários e figurantes)?

Qual é o espaço dramático de O crush da professora "Z" Maria?

Em quais aspectos o espaço cênico pode ser visto como tribuna?

 

O que a intertextualidade em O crush da Professora“Z” Maria pode evocar em relação ao tempo da escrita, ao tempo  dramático e à veracidade do caso entre a professora (personagem) e o dramaturgo francês Ionesco (que como personagem é inexistente)?

 

“Há muitas formas de um texto se referir a outro: paródia, pastiche, eco, alusão, citação direta e paralelismo estrutural. Alguns teóricos acreditam que a intertextualidade é a própria condição da literatura – que todos os textos são tecidos com os fios de outros textos, independente de seus autores estarem ou não cientes.” (LODGE, 2011, p. 107).

A intertextualidade implícita exige um esforço maior de análise do leitor que  não recebe informações sobre o texto fonte. Já na intertextualidade explícita, há indicação da fonte.

 

Referência

LODGE, David. A arte da ficção. Trad Bras Guilherme da Silva Braga. L&PM Pocket, 2011.

 

Você considera esse texto cômico, trágico ou tragicômico?

 

A tragicomédia foi amplamente difundida no teatro clássico, e caracteriza-se pela combinação de elementos dramáticos e cômicos.

O lado cômico da tragicomédia expressa rejeição, mostrando algo com deboche, recorre à paródia, na qual recria-se um personagem ou um fato de maneira grotesca.

Na Grécia Antiga, a tragicomédia utilizava o coro para comentar as cenas e representar o público na participação da peça teatral.

Geralmente há um herói que age em prol da justiça social e depois de muito sofrimento tem um final é feliz.


Referência

Editorial QueConceito. São Paulo. Disponível em:

 https://queconceito.com.br/tragicomedia. Acesso em: [21/02/2022]


sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Entre quatro paredes. Edna Domenica Merola

Ele bateu à porta por volta das 18 horas. Ela não abriu. Mesmo se tratando de um condomínio com portaria 24 horas, ela ponderou que pudesse ser um estranho.

 

A senhora perguntou quem era e o que ele queria. Uma voz que não transmitia conforto respondeu que era o vizinho e que vinha para perguntar se ela fazia uso de incenso e se arrastava cadeiras.

 

Foi então que ela abriu a porta, exibiu seus cabelos brancos, sua bengala e (por que omitir?) certa vitalidade na comunicação.

 

Disse-lhe que a bengala, com certeza, fazia barulho, que dormia bem e que portanto os ruídos seriam ouvidos apenas durante o dia, mas que continuariam ocorrendo já que não podia prometer que sua fada madrinha iria fazê-la acordar, no dia seguinte, sem as limitações das quais padecia.  

 

Quanto ao incenso, respondeu ao moço que não usava (nem acendia velas), que não praticava nenhum ritual no apartamento. 

 

Acrescentou ter ouvido queixas de outros moradores em relação a cheiro de maconha. Perguntou se as suspeitas dele sobre o uso de incenso se dirigiam a "fumantes". Ele disse que sim.

 

Nessa altura, ela pôs a cara em direção ao corredor e ergueu a voz ao dizer:

- Não uso maconha, à revelia de que poderia fazê-lo, já que tal uso tem indicação para artrose, doença crônica da qual sofro.

 

A idosa prosseguiu com seu discurso indignado. Mas, quanto mais ela falava, mais o moço repetia suas acusações. Da soleira da porta do apartamento dela, o estranho podia ver uma mesa com quatro cadeiras na sala. Apontou a que ficava na posição tal que quem nela sentasse ficaria de costas para a porta, indicando que o barulho partia de lá. 

Ela respondeu que nunca sentava daquele lado.

 

Quando ele foi embora, ela aquilatou que falara demais. Com seus blefes, o caçador aumentara os informes sobre sua caça.

Entre pensamentos esparsos da idosa, foram aparecendo novas perspectivas sobre a cena do visitante indesejado. Cada vez que ela passava perto das cadeiras ao redor da mesa, imaginava como seria recobrar o vigor para batê-las com força no chão.

 

E o hábito de bater talheres na louça, por que nunca tinha tido, durante toda a vida? Ainda poderia adquiri-lo...

 

E mesmo estando sozinha nas refeições, poderia gritar:

 

- Passa o sal, por favor!

 

Ou melhor:

 

- Porra meu, passa esse sal logo!

 

Superada a fase de refletir sobre comportamentos, novos sentimentos sobre o outro foram aflorando.

 

O primeiro foi o de indignação por ter sido tachada injustamente de maconheira. O segundo foi o medo de que o estranho vizinho traçasse planos de vingança pela falta de receptividade por ela sinalizada. Indignação e medo redundaram na instalação da presença invisível e dominadora do novo vizinho em sua sala, em seu apartamento, em sua vida. Em pouco tempo, consolidou-se a sensação de sobreviver num território invadido. Passara a ser sem pátria dentro de sua própria casa!

 

Teve necessidade de se voltar para fora: conviver com o campo visual dado pela varanda. Tratava-se de um cenário verde a que todos deveriam ter direito...

 

Começou a reparar: havia sim um cheiro de queimado que vinha pela sacada do apartamento. Passou a procurar insistentemente por quem se dispusesse a localizar quem queimava lixo no bairro.

 

Desgastou-se. 

 

Para tentar superar, passou a coletar frases de auto ajuda. Muitas giravam em torno de “o inferno são os outros”. Muitas deturpavam o sentido da tal frase colhida da boca de um personagem da peça "Entre quatro paredes" escrita por Sartre no final da chamada segunda guerra do século XX, na qual o inferno é uma sala sem espelhos onde os condenados só podem se ver por meio dos olhos dos outros. 

E foi naquele mundo de auto ajuda que ela viveu, longe de seu vizinho, até o 

FIM

 

Caro leitor, cara leitora, responda a quem narra esta história: "tal política de vizinhança causará a extinção do planeta Terra?"

 

sábado, 23 de dezembro de 2023

Leitores & Escritores: interações – amigo secreto 2023

Leitores & Escritores: interações – amigo secreto 2023 


Verbos e flores secas

Antonio Gil Neto

 

sou um desses cantos debatendo-se no deserto

ao sopro dos ventos

musicando-se

 

sou o que fora presente e não suporta a violência incessante

do mundo

sou o que vai até o fim para ver as cores resistentes de um

recomeçar

  

estou regulado, animado a aprender a me preparar para

 as vindouras horas

 

estou segurando algumas sementes como um sacrário

resiliente, veloz

 

estou de olhos fechados, inquietos, imaginando, imaginando,

imaginando...

  

brinco com as pessoas que moram em mim e que enlevam

o meu coração desnudo

amanheço esperançado por ouvir mais o cântico das

águas e a alvorada dos pássaros

 

chamo-me de amigo e confidente, fiel ao afeto e às verdades

necessárias a todos os homens


Em desabrochado,

invento

desmedidos quintais

infindo

sentimento.

(aqui dedicado para Edna)


Texto de Cassiano Silveira

A Mulher e a Criatura Criatura está em silêncio, caminhando devagar com seus sete pés humanos. Vez por outra um graveto estala, pois que Criatura é desajeitada e grande. Seu poder, porém, é descomunal. Procura Aquela Que Lhe Pode Meter Medo. Procura com seus grandes olhos de coruja, projetados através das telas hipnóticas que cantam músicas embriagantes para os que não sabem ouvir. Seu corpo de lagarto dispara flashes de luz pelas escamas de fibra ótica, varrendo o ambiente em tentativa de cegar quem quer ver do que é composta. Criatura tateia com muitas mãos os cantos e os botões e as barras deslizantes. Algoritmos são ajustados para buscar Aquela que pensa, para filtrar as palavras proibidas em qualquer contexto, a censura-burra de Criatura: m0rt3, d0r, m3do, 1d1ot1c3? Nada disso, o proibido é goz4r, f0d3r, v1v3r pl3n4m3nt3 e am4r v3rd4d31ram3nte! Criatura vomita um fogo que consome de dentro para fora, um fogo invisível de metanol, um álcool estranho que desfoca quem o bebe, depois neutraliza no padrão de cores. E quando Criatura depara com os sinais pendurados nas paredes, os símbolos que conjuram a ver e viver, que desabrocham flores de puro vermelho sangue... gela! Os diagramas herméticos que penetram os olhos que os olham, que buscam acordar e dar rota de fuga e planos de luta. Criatura os vê e não entende e seus olhos queimam e ela se desespera. São as obras de Aquela Que Lhe Pode Meter Medo! Criatura, enfurecida, escoiceia, esgoela, escancara suas faces de ódio e vendas, esmurra com mãos sujas de lucros e entranhas alheias. Derruba pilares do templo, que virtualmente se refaz. Então Aquela Que Lhe Pode Meter Medo surge. Pequena ante Criatura, luta de olhos fechados, ouvindo com a alma os movimentos do monstro. Os golpes de Aquela desenham cores no ar, projetam luzes e sombras duras na existência de Criatura. Os contrastes fortes desestabilizam o animal-morte, contrastes de crueza que revelam a vida diante do morrer de todos os dias. Os contragolpes da criatura resvalam no escudo de linho e touch screen. O fogo e cuspe definha nas madeiras, óleos e papéis que constroem a mais dura armadura. E Aquela, de pequena, só cresce! E de nada importa quem dará o último golpe. Aquela Que Lhe Mete Medo já tem em sua cabeça os louros. A ela pertence a vitória, pois que a vitória pertence a quem se levanta todos os dias. 
(Para Rosilene Souza) 


Texto de Edna Domenica Merola 
Secreta pessoa

Sobre ela preciso dizer que 
Sua atividade inova e
Instiga, alimenta e reúne. 
Vem até de Alexandria, crê? 

Castro Alves clamou a semear
tais objetos que de natureza ímpar
que sobre as artes vão se lançar,
na busca de gentes a cativar. 

Sobre ela é preciso dizer:
É corajosa e estudiosa, 
pois da psiquê também quer o saber.

Seria talvez voluntariosa?
É daquelas que paga pra ver? 
Quem é essa pessoa amistosa? 

(Sobre Esni Soares) 



Texto de Esni Soares 

Para falar de uma pessoa, você precisa conhecer, certo? Mas quem conhece verdadeiramente alguém? Assim vou falar um pouquinho de como vejo esta pessoa: Pensa numa pessoa que tem um coração enorme; Que tem uma simpatia ao falar; Gosta de falar de suas experiências de vida, suas dores e seus amores. Sua escrita sempre nos traz algo de bom, que alimenta a alma de afeto e esperança. 
Gosta de estar entre amigos, mas como boa matriarca, Sua prioridade é a família. Uma pessoa de muita fé, que segue sua religião com muito amor e respeito ao próximo. Alguém que ao se despedir faz questão de um abraço carinhoso, e sempre com um sorriso. Desejo a você minha amiga secreta, toda paz e amor possível neste Natal. Que o Ano novo renove sua esperança de dias melhores. Com carinho Esni 

(para Marlene Xavier Nobre)

terça-feira, 15 de março de 2022

Cássia Regina Batista comenta Coletânea Tudo poderia ser diferente (inclusive o título)

 Quando fui convidada pelo autor Cassiano Silveira para ler três contos de um livro de diversos autores e depois tecer alguns comentários numa live de lançamento, mas sem dar muitos detalhes comecei a ficar nervosa. Para me "tranquilizar" ele contou que o Mário Motta participaria também. Ao ler o título do livro, Tudo poderia ser diferente (inclusive o título), comecei a sorrir, essa frase tem sido o começo de muitas reflexões minhas, sobre a sociedade de uma maneira geral, sobre mim mesma e as minhas escolhas e também sobre a maneira como o Brasil está atualmente.

Então li a apresentação do livro feita pelo Mário Motta (Vide ADENDO IV), simplesmente incrível.

E o Manual de instrução (Vide ADENDO V) do livro é muito legal, vontade de pedir para todos as editoras colocarem um manual de instruções em seus livros, pois ele já nos faz entrar no livro em grande estilo, já explica para que servem livros, em geral, e também possui uma introdução de cada uma das histórias .


Os três contos escolhidos para que eu fizesse a leitura foram: De Absinto Pioneiro á Lara Pia, escrito por Edna Domenica Merola; O terraplanista, escrito por Cassiano Silveira e por último, mas não menos importante: O silêncio da nossa casa, por Marlene Xavier Nobre.

 

- De Absinto Pioneiro à Lara Pia

"Esta é uma história bem brasileira circunscrita sob a máxima:

-Sabe com quem você está falando?"

Assim começa o texto. Essa primeira frase do conto nos remete a alguém que tem certeza do seu poder perante determinada situação ou a alguém que tem uma profissão que o beneficia ou que o protege. Quantas vezes ouvimos a notícia de que algum crime não está sendo investigado da maneira como deveria e ficamos intrigados pensando quem será que era? Será que era realmente alguém tão poderoso e influente que nem a justiça pode tocar?

"Mas, logo a entrar na escola, Lara Pia, descobre que seu nome é objeto de trocadilho..." essa parte do texto me fez sentir uma leveza quase como se fosse um momento em que mesmo rodeados por corrupções e fraudes possamos ver a vida de uma maneira onde sempre tenhamos algo em que nos faça sorrir.

O conto é sobre a família que poderia ser qualquer família influente, rica e poderosa, de qualquer região do país ou de quase qualquer bairro daqui de Floripa. Essa família começou desde seus primeiros integrantes a usar a influência e a política para tirar vantagem e organizar não as regiões em que moravam, mas sim as suas vidas, isso me lembrou muito vereadores dos nossos bairros, principalmente aqui do Rio Vermelho em que existem ruas que foram lajotadas há anos e outras que ainda nem têm previsão, e olha que nem estou falando das ruas clandestinas, pois muitas dessas foram lajotadas com o dinheiro da Prefeitura (ou seja, nossos impostos).

Ao ler o título já fiquei imaginando a mulher Lara Pia, como seria a sua vida. E ao finalizar o texto a autora deixa o questionamento: "-Tudo poderia ser diferente?"

A minha resposta mais sincera é: espero que sim, espero que logo tudo comece a ser diferente, no mundo, na política e principalmente nos nossos bairros.

 

- O terraplanista

 A crônica já começa demonstrando com muita precisão uma parcela da sociedade, imaginei vários conhecidos famosos e anônimos no lugar de Rolando, o protagonista.

"O experimento científico de maior importância da história da humanidade estava prestes a acontecer. Os jornais impressos, as revistas de ciências, os noticiários [...] todos lançavam a grande matéria: Rolando vai para o espaço."

O texto refletiu a nossa realidade de uma maneira cômica e conforme fui lendo não conseguia desvendar qual seria o desfecho da história e fiquei bem impressionada com o desfecho e com toda a sua semelhança com a realidade.

 

- O silêncio da nossa casa

 Ao começar a ler o texto, entrei na casa dela, sentindo todo o horror dos tempos da ditadura, nunca havia lido um texto que me colocasse aqui em Florianópolis nesses perigosos anos, achei o texto incrível. Ao finalizar, a única reflexão possível foi como estamos deixando isso acontecer novamente, há alguns anos temos sentido medo de nos expressar e de dizer publicamente o que pensamos dos governos e governantes.

 No tempo em que estamos vivendo esse livro é um ato de coragem imensa e só tenho a agradecer por ter sido convidada em primeira mão a ler três de seus contos antes do lançamento. Desejo a todos os autores um imenso sucesso!

 

Texto de Cássia Regina Batista, bibliotecária da Prefeitura Municipal de Florianópolis, fã de Harry Potter, apaixonadíssima por Romances de época e pela Feia mais bela, em amor total por Thabata (minha filha) e casada com Ivan.


REFERÊNCIAS

MEROLA, E.D. Manual de Instruções e De Absinto Pioneiro a Lara Pia. InTudo poderia ser diferente (inclusive o título). Amazon Kindle, e-book, 2022. 

MOTTA, Mário. Apresentação. InTudo poderia ser diferente (inclusive o título). Amazon Kindle, e-book, 2022. 

NOBRE, Marlene. O silêncio da nossa casa. In Tudo poderia ser diferente (inclusive o título). Amazon Kindle, e-book, 2022. 

SILVEIRA.  O terraplanista. In Tudo poderia ser diferente (inclusive o título). Amazon Kindle, e-book, 2022. Informes sobre a aquisição da coletânea Tudo poderia ser diferente. Disponível em

https://www.amazon.com.br/Tudo-poderia-ser-diferente-inclusive-ebook/dp/B09RMRSZSF/ref=sr_1_1?__mk_pt_BR=%C3%85M%C3%85%C5%BD%C3%95%C3%91&crid=120IWQT84EJF3&keywords=coletanea+tudo+poderia+ser+diferente+inclusive+o+t%C3%ADtulo&qid=1647103160&s=books&sprefix=coletanea+tudo+poderia+ser+diferente+inclusive+o+t%C3%ADtulo%2Cstripbooks%2C193&sr=1-1


ADENDO I: De Absinto Pioneiro a Lara Pia. Edna Domenica Merola

 

Esta é uma história bem brasileira circunscrita sob a máxima:

– Sabe com quem você está falando?

A narrativa desta saga começa em 1873, com a fundação de um pequeno povoado que outrora fora reconhecido pelo nome do rio em torno do qual se fixaram os pioneiros.

Dentre os prováveis fundadores está (segundo ele próprio) Absinto Machado de Alencar, primo de José de Alencar. Por esse motivo passa a se apresentar como Absinto Pioneiro Machado de Alencar.  Por ser politicamente correto, posteriormente, sugere às demais autoridades que o local seja chamado pelo nome de um músico brasileiro, já que é de bom tom valorizar as artes nacionais, em especial a ópera.

Absinto Pioneiro sugere ainda que a data oficial para celebrar a fundação da localidade seja o dia 16/02/1873, data da apresentação da ópera Fosca, de Carlos Gomes.

Por mérito e esforço pessoal, o pioneiro consegue articular o necessário cartucho para averbar o nome da cidade ao próprio. Em nove de novembro de 1889, o fazendeiro Absinto Pioneiro Machado de Alencar vai ao último baile do império (na Ilha Fiscal) e pede a um assessor de D. Pedro II a autorização para incorporar o nome do município ao seu nome e da família, sendo atendido na véspera da proclamação da República. Ou seja, em catorze de novembro de 1889, passa a se chamar Absinto Pioneiro Machado de Alencar Carlos Gomes.

Passam-se anos marechais... Passam-se décadas republicanas até que, em 24 de outubro de 1930, o jornalista José Machado de Alencar Carlos Gomes (sobrinho de Absinto Pioneiro) noticia na Gazeta de Carlos Gomes o Golpe de estado, e o fim da República Velha.

Em 19/08/1943, na biblioteca de Carlos Gomes, em solenidade comemorativa do centenário do conto O gato preto de Edgar Alan Poe, o vereador Absinto Machado de Alencar Carlos Gomes é avisado de que sua mulher está dando à luz os gêmeos Esaú Absinto e Jacó Absinto.

No dia seguinte, em páginas diferentes da Gazeta de Carlos Gomes são noticiadas as atrocidades da Segunda Guerra do século XX e o nascimento dos dois bisnetos de Absinto Pioneiro Machado de Alencar Carlos Gomes.

Em 1950, os gêmeos entram na escola e vão ser colegas de Curvelo de Assis. Lembram-se dele? Devem lembrar-se porque, cedo ou tarde, todos percebem que suborno e delação são frequentes, que cada um tem seu preço, e que muitos acabam se vendendo.

Em vinte e quatro de agosto de 1954, no mesmo instante em que foi noticiada, pelo rádio, a trágica morte do presidente, o prefeito de Carlos Gomes – Absinto Machado de Alencar Carlos Gomes – é avisado de que sua mulher está dando à luz a menina Maria Alzira Vargas de Alencar Carlos Gomes.

Em vinte e um de abril de 1960, a família Carlos Gomes comparece à solenidade da fundação de Brasília. Nesse mesmo ano, os gêmeos votam pela primeira vez.

Em 1962, Esaú Absinto e o irmão gêmeo Jacó Absinto apaixonam-se por Flora de Assis que morre de amor, precocemente. Na noite após a missa de sétimo dia, Esaú Absinto tem um sonho que considera um chamamento e entra para o seminário. Jacó Absinto apoia-se em colegas e formam uma banda de rock.

Em 31/03/1964, ocorre um golpe militar, no Brasil. Após esse evento, Esaú Absinto Machado de Alencar Carlos Gomes deixa o seminário, termina a graduação em Filosofia e vai morar em Paris.

Em 16/02/1973, Esaú Absinto retorna ao Brasil para a solenidade de comemoração do Centenário de Carlos Gomes. Após o evento, numa excursão nacional, conhece a bela Iracema de Alencar e mantém com ela um namoro. Em 16/02/1975, casam-se e vão morar em Brasília.

Em janeiro de 1980, Esaú Absinto retorna para Carlos Gomes com a esposa Iracema que dá à luz uma menina e falece logo em seguida. Um nascimento, em 01/02/1980, um enterro em 02/02/1980... Mas Jacó Absinto (por direito de padrinho) escolhe o nome da sobrinha, batizando-a de Lara Pia. Escolhe Lara, em homenagem à personagem do filme Doutor Jivago, e Pia – feminino de pio – que como adjetivo quer dizer benigna, para levantar o astral da criança frente às circunstâncias negativas de seu nascimento.

Mas, logo ao entrar na escola, Lara Pia descobre que seu nome é objeto de trocadilho em referência a alguns membros de sua família serem responsáveis por alguma negociata larápia, algum crime do colarinho branco, algum uso de informação privilegiada. Tais injustiças deixam a menina traumatizada, até ser curada num grande templo por obra de uma líder religiosa versada em transportes corporais de dólares para o exterior.

No final de 2014, encontramos os gêmeos morando novamente no antigo solar da família. Jacó está divorciado e não teve filhos.  Esaú está viúvo e a única filha dele deixou a próspera Carlos Gomes.

Os deputados federais eleitos em 2014 para o mandato 2015–2018 tomam posse em 01/02/2015, e junto com eles está Lara Pia Carlos Gomes. Em 2016, seus 366 coleguinhas e mais Lara Pia votam a favor do impeachment da presidente.

Lara Pia se reelege e continua a expandir seu rol de amizades. Em junho de 2019, Lara Pia ajuda uma colega deputada a contratar o funcionário ideal para resolver uma pendenga conjugal que demandava pulso firme, boa mira e fé (muita fé) no gatilho! Sobre a solidariedade de Lara Pia ninguém fica sabendo, já o mesmo não acontece com Flordelei. Porém o que conta mesmo é a imunidade prisional a parlamentares e o apoio da igreja. Afinal, é tudo obra do diabo!

Três dos cinco empregados do velho solar morrem de Covid 19, em 2020, deixando órfãos que a família Machado de Alencar Carlos Gomes ignora.

No início de fevereiro de 2021, os gêmeos Esaú Absinto e Jacó Absinto furam a fila da vacina contra o COVID 19. Graças à lei do Gerson, sobrevivem.

Em 19/08/2043, em meio às comemorações do bicentenário do conto de terror O Gato Preto, em dupla homenagem a Edgar Allan Poe e aos estudos da psicologia da culpa  os habitantes de Carlos Gomes testemunham uma dupla eutanásia: a dos gêmeos Esaú Absinto e Jacó Absinto.

De resto, só sei que foi assim que a saga da família Machado de Alencar Carlos Gomes reuniu fatos históricos, musicais, literários, parlamentares... Sem culpa... pela aderência aos duplos malignos: concentração de renda e injustiça social; injustiça social e uso da coisa pública como se fora privada; uso da coisa pública como se fora privada e delação premiada; delação premiada e imunidade prisional parlamentar, imunidade prisional parlamentar e concentração de renda... Num círculo vicioso. 

– Tudo poderia ser diferente?


ADENDO II: O terraplanista. Cassiano Silveira

 

O experimento científico de maior importância da história da humanidade estava prestes a acontecer. Os jornais impressos, as revistas de ciências, os noticiários televisivos, os portais de notícias virtuais, os mais proeminentes perfis do Instagrão e do Feicibuqui, todos lançavam a grande manchete: “Rolando vai para o espaço!”.

O grande Rolando, pesquisador autodidata em geometria sideral, maior nome do terraplanismo universal, iria finalmente destruir a mentira de que a Terra é uma esfera, uma elipse, um geoide ou qualquer coisa parecida com uma bola. A Terra, o nosso planeta, era obviamente plano, como qualquer criança conseguiria perceber olhando uma bacia d’água: se fosse esférico, a água dos mares e rios escorreria e cairia no vazio; se fosse uma esfera giratória, então, pior ainda, pois seria lançada longe pela força centrífuga. Gravidade? Ah, conta outra!

O grande Rolando iria finalmente provar que os terraplanistas estavam certos, a Terra era uma grande bacia celestial na área de serviços de Deus. Iria demostrar aos que acreditavam na Terra esférica que estavam redondamente enganados. Para tanto, usaria os mais precisos, mais perfeitos, mais confiáveis instrumentos existentes. Usaria os próprios olhos! Havia inclusive visitado o oftalmo: miopia compensada, lentes fotocromáticas e antirreflexo, um luxo só.

O grande Rolando há anos trabalhava no projeto da sua vida, viajar ao ponto mais alto da atmosfera para contemplar e comprovar a baixela geológica sobre a qual caminhava o homem e se depunham mares, terras, plantas, animais e todo o resto. Buscou financiamentos, fez uma vaquinha virtual, rifou seu cachimbo, passou seu chapéu na Convenção Mundial dos Astrônomos Terraplanistas e por fim, com o donativo de um excêntrico milionário francês radicado na Ilha de Santa Helena, reuniu o dinheiro necessário. Comprou uma passagem no foguete espacial de Élio Mosca, que ia colocar mais um satélite em órbita da Terra. Alguns terraplanistas mais exaltados criticaram a carona, pois ir com Mosca até o mais alto da atmosfera era como pedir ao Diabo uma carona até o Paraíso:

– Ele diz que põe satélites em órbita da Terra! – exclamava um.

– Diz que é possível viajar à Marte! – falava outro.

– Um blefe! – respondia Rolando – não há órbita da Terra, ela é plana.

Mas, para atingir o grande objetivo, era necessário fazer associações não muito confortáveis. “Os destinos justificam os caminhos”, dizia Rolando, especialista em paráfrases de lugares comuns. E assim, chegou o grande dia!

O grande Rolando se apresentou à plataforma de lançamento já vestido com todas as desnecessárias roupas espaciais. “Deixe estar, vamos teatralizar um pouco”. Tomou seu lugar no assento, ao lado da tripulação. Cinco, quatro, três, dois, um! Fez-se um ruído ensurdecedor no interior da nave. Tremores, calor, uma pressão insuportável no peito; Rolando perdeu os sentidos. Quando voltou a si, reinava uma paz celestial. Olhou por uma janela e ficou surpreso: via um fundo negro pontilhado de luzes pulsantes, inúmeras, ornando um céu que parecia ser bem maior do que imaginara. “Talvez eu precise rever meus cálculos sobre a altitude do domo...”, pensou vexado, mas sem deixar transparecer a surpresa. Os tripulantes pareciam tranquilos, apesar de ocupados, observando telas, apertando botões e manipulando touch screens. Foi então que ele olhou para a janela do lado oposto à primeira. Qual foi a surpresa de Rolando quando deparou com uma curva e azulada superfície que cobria quase todo seu campo de visão, exceto por um trecho de horizonte arqueado no quadrante superior esquerdo da escotilha. Sentiu um frio na barriga, mas não era medo de altura. As coisas não estavam saindo conforme havia imaginado. Estava vendo coisas que não sabia explicar e lá no fundo, bem lá no fundo de sua mente, sentiu que suas certezas absolutas poderiam ser abaladas. Chacoalhou a cabeça para espantar a ideia, que só podia ser coisa do Cão, muito bem articulado como sempre!

– Grande Rolando! Bem-vindo ao espaço! Gosta do que vê? Você perdeu a parte boa da viagem! – disse o comandante da nave.

Não fez caso da ironia do comandante. Soltou-se do assento e, pasmem, flutuou até a janela. Não quis pensar no fato, havia reflexões mais urgentes diante dele. Aproximando o rosto da abertura procurou observar a Terra como um todo, mas não havia distância para isso.

– Vamos fazer um trajeto diferente nessa viagem, Sr. Rolando. Iremos adentrar mais profundamente no espaço para lhe permitir uma visão completa do globo terrestre – anunciou o comandante, enfatizando a palavra “globo”.

– Cuidado com o domo...

– Aham – respondeu o comandante, olhando de esguelha para o navegador que balançava negativamente a cabeça, na face uma expressão de tédio.

O grande Rolando afundou-se em seu assento, no sentido figurado da expressão, olhando para o próprio joelho, a cabeça envolvida por um torvelinho de pensamentos desencontrados. Após um tempo que ele não soube precisar quão longo foi, olhou novamente pelas janelas. De um lado nada mudara, os pequenos pontos de luz continuavam aparentemente imóveis, aparentemente muito distantes, sobre um fundo aparentemente muito negro. “Definitivamente, preciso recalcular a altitude do domo”, pensou. Antes de virar para o lado oposto, respirou fundo. Voltando-se, foi acometido por uma vertigem, como se estivesse caindo em um poço escuro infinito; seu cérebro chacoalhou como roupas dentro de uma máquina de lavar, enquanto seus neurônios faiscavam como uma torradeira em curto-circuito. Alucinação? Pesadelo? Ingredientes suspeitos naquele guaraná cor-de-rosa? Pela escotilha observava um planeta sereno, azul, flutuante e redondo.

O grande Rolando se sentiu pequeno. Por São Tomé, não podia acreditar no que via! Aquela cena punha por terra a Terra plana, todo o sólido conjunto de conhecimento construído por ele e seus visionários parceiros. Talvez seus olhos o enganassem? Quem sabe alguns graus a mais ou a menos nas lentes dos seus óculos pudessem corrigir essa aberração. Olhou ao redor, procurando algo que lhe consolidasse a fé que insistia em sublimar, mas só enxergava fios, botões, luzinhas piscantes e telas. Telas, lógico! Só podia ser isso! No lugar das janelas, Élio Mosca havia mandado colocar telas, monitores que ficavam continuamente passando aquele vídeo surreal, mostrando uma Terra redonda suspensa no nada! Possivelmente, a “nave” nem havia saído do chão. Ele estava ali, acuado como um ratinho de laboratório. Haviam-no colocado em uma caixa e o estavam tentando convencer com uma mentira. A verdade estava fora da caixa, ele sabia e iria comprovar.

O grande Rolando havia renascido, toda sua coragem e perspicácia pulsando em suas veias. Jogou fora os óculos e se transformou no herói que estava destinado a ser. Com olhos de águia (míope), fez uma varredura pela cabine e, preso a um cantinho do compartimento, encontrou o instrumento ideal para sua necessidade atual. Lá estava o instrumento de precisão mais relevante já criado pelo ser humano, um reluzente martelo, do qual Rolando precisava muito agora. Tentou correr em direção à ferramenta, mas seus pés patinaram devido à ausência de gravidade.

– Como que o Mosca faz essa merda?!

 Agarrou-se então onde fosse possível e se puxou até chegar ao objeto desejado, empunhou-o brevemente, voltou-se para a janela/monitor onde cintilava um lindo globo azul giratório e o arremessou. Na mente de Rolando tudo aconteceu em câmera lenta, o martelo viajando rumo ao alvo, a expressão de surpresa da tripulação, que demorara demais a perceber o que estava acontecendo e a sensação de alívio, satisfação e orgulho crescendo em seu peito. O martelo atingiu seu alvo bem no centro, como se atingisse aquela mentira redonda e azul no meio da tela, que se estilhaçou de imediato.

Os jornais impressos, as revistas de ciências, os noticiários televisivos, os portais de notícias virtuais, os mais proeminentes perfis do Instagrão e do Feicibuqui, todos estampavam a trágica notícia: “Nave de Élio Mosca explode!”

Os técnicos não sabiam explicar o que havia acontecido. Todas as leituras da nave estavam normais, nenhum objeto fora percebido em rota de colisão com o veículo. Cogitou-se que um fragmento de lixo espacial poderia tê-la atingido, pequeno demais para ser detectado, mas grande o bastante para danificar a estrutura da nave, que se desintegrou por completo. Todos os tripulantes haviam perecido. O meio científico terraplanista, porém, jamais se convenceria do “acidente”. A obviedade do acontecido era incontestável: diante da possibilidade de um proeminente representante da Terra chata comprovar as teorias da Terra rasa, os cientistas ortodoxo-redondistas haviam se organizado para eliminar Rolando, numa conspiração friamente arquitetada para manter o controle da população mundial. O movimento terraplanista, que alguns mal-intencionados desejaram desestabilizar e enfraquecer, somente se fez autoafirmar. A cada convenção, os integrantes dedicavam-se fervorosamente a convencer quem já estava convencido, obtendo êxito invejável e convencendo-se a si mesmo ainda mais, em um feliz círculo vicioso isento de contestação. O movimento até atualizou sua denominação: agora imperava o terraplanismo-rolandocrônico, ou rolandismo-terraplanótico..., sei lá.

Rolando comprovara, absolutamente, a teoria da Terra plana. O grande Rolando!


ADENDO III : O silêncio da nossa casa. Marlene Xavier Nobre 


Era 1964, tinha onze anos de idade.


Guardo na memória a triste lembrança de meu pai. Subiu o morro com os cabelos revirados e os olhos arregalados. Foi amparado por minha mãe.


De imediato, não entendi a gravidade do que vivíamos. Soube depois que meu pai fazia parte de um movimento político.


Foi numa segunda-feira. Meu pai estava no trabalho, em sua função de gráfico. A polícia militar fez um arrastão pela cidade à procura do grupo a que meu pai pertencia.


Ele não havia matado e nem roubado. Como cidadão, ele lutava pelos seus direitos. Prenderam todos os seus amigos.


Meses depois, meu pai ficou sabendo que seus companheiros haviam sido levados para a Ilha das Cobras (RJ), onde foram torturados e mortos.


Meu pai ficou dois meses preso no quarto de nossa casa. Lembro-me de que na casa de madeira na qual morávamos tinha frestas. Minha mãe, minhas irmãs e eu colocamos jornais para tapá-las.


Fui escolhida para ir, diariamente, comprar jornais na banca que ficava na Avenida Mauro Ramos, à altura do número 982. Antes que saísse de casa, meu pai recomendava que se alguém perguntasse por ele, que não respondesse. Poderia falar apenas com o dono da banca, mas em tom bem baixo, e dar notícias dele.


Todas as noites ele ouvia, no rádio, as notícias sobre o país.


Foi uma época muito tensa. Minha vida e dos irmãos ficou muito restrita. Só podíamos brincar no quintal, mas não podíamos dizer uma palavra. O silêncio imperava. Só saíamos para ir à escola.


Quando passavam aviões da FAB, meu pai ficava em pânico.


Meu pai era algoz de si mesmo. Não via o sol e nem a luz do dia. Ficou de barba e cabelo por fazer. Estava bem abatido.


Minha pobre mãe nada podia fazer além de cuidar e de se dedicar a ele, naquele momento difícil.


Sinto que ele foi forte para resistir psicologicamente e conseguir sobreviver. Sempre dizia para minha mãe que sua luta era em benefício de seus netos.


Os netos de meu pai cursaram a universidade. Isso foi uma grande abertura para a nossa família e para muitas outras de origens semelhantes à nossa.


Os bisnetos de meu pai experimentam hoje o retrocesso histórico relativo ao cerceamento de liberdades.


O bisavô deles, como eterno militante, deve estar novamente sofrendo por isso, no Além.


ADENDO  IV

Apresentação

Quando recebi o convite para apresentar essa coletânea, juro que titubeei. Depois percebi que vacilei – identificaria melhor minha reação. Por fim – aceitei, foi o verbo que abraçou a ação.

Quem sou e porque eu? Pensei.

Já conhecia a maior parte dos autores com quem passei uma tarde deliciosa conversando sobre comunicação e aprendendo um pouco mais sobre a capacidade humana de se expressar, de se relacionar com o próximo e respeitá-lo, numa Oficina que os reunia e que por fim, motivou essa coletânea.

 Fiquei maravilhado com a diversidade de seres tão semelhantes, reunidos por um único sentimento – o amor às palavras e o que elas conseguem expressar.

 Senti-me honrado, mas confesso meu vacilo foi imaginar como apresentá-los se a qualidade de seus textos o fará por si.

Quando recebi os originais, senti um certo alívio, pois o Manual de Instruções que segue essa humilde apresentação, é mais que perfeita do indicativo para prefaciá-los.

 Resumiu exatamente o que eu pensei fazê-lo e que não só se tornou desnecessário, como já nos dá uma visão da impressionante diversidade de temas tão próximos do mesmo fio condutor da coletânea: o amor pelas palavras e a incrível capacidade de expressar os mais diversos e remotos sentimentos humanos, nas diversas formas como terão oportunidade de ler e que antecipo roubando do Manual: contos, crônicas, cartas, texto para teatro, fábula.

Se de alguma forma eu puder criar uma expectativa, provocar uma curiosidade ou despertar um sentimento de busca por algo novo em você, caro leitor, terei cumprido minha nobre missão e posso garantir que o cardápio de estilos que segue, não perde em nada para os menus dos melhores restaurantes literários do pedaço.

Bom apetite e que sua fome de palavras, ideias e sentimentos, seja devidamente saciada.

                                       Mário Motta

Apresentador Jornal do Almoço , NSC TV Florianópolis, SC.


ADENDO V: Manual de instruções

Isto é um livro. Pode ser que não o manuseie há tempos ou nunca o tenha feito. Este objeto não resiste a intempéries, em tempos líquidos. Por ter sido escrito por um grupo de autores tem vida em múltiplas idades que habitam corpos diferentes, residentes em diferentes cidades, nascidos em tantas outras... Isso faz dele um objeto forte e potente desde que em mãos que o apontem para leitura.

Leia-o como se fosse escrito por um único pensador, já que foi aparado e batizado num gesto conjunto em seu nascedouro. Repare, no entanto, em cada toque pessoal tatuado em composições artísticas que chamamos de contos, crônicas, cartas, texto para teatro, fábula.

De Absinto Pioneiro a Lara Pia toma por referência o conto O Gato Preto, de Poe, para narrar a saga de uma família que exerce dupla maldição sobre o povo:  enriquecimento ilícito e trato do patrimônio público, inclusive imaterial, como se fosse privado. 

Voo cego traz um diálogo entre dois personagens: um mandante negacionista e um piloto que deve obedecer à revelia da pertinência ou não da ordem dada.

O Crush da Professora “Z” Maria parte de uma citação da peça A Cantora Careca, de Ionesco, para revelar impressões sobre o estilo de comunicação de mandantes que combatem as artes, o ensino e a lógica, à semelhança do teatro do absurdo.

O terraplanista trata da retomada contemporânea de algo muito antigo: acreditar apenas no que pode ser visto e tocado, aceitar apenas argumentos favoráveis à própria opinião, associar tudo aquilo que o contradiz a uma teoria de conspiração.

Carta ao Autor Desconhecido é resposta a uma carta anônima que circulou em redes sociais.

Das belezas da democracia é uma fábula que enfoca o voto livre para eleger o presidente como algo envolvido por animosidades e pichações. A democracia comparece como trabalhosa e extenuante até se tornar agonizante e morta, como anseio de ditadura.

O silêncio da nossa casa: um militante se aprisiona na própria casa, em 1964, numa cidade brasileira.

A Freira de Blumenau é um conto jocoso sobre uma possível reunião de militantes e simpatizantes nazistas de todo Brasil, e de como esse evento, por obra do acaso, acaba por esquentar a relação de um jovem casal.

Anos de chumbo,retrata uma história vocacional que sofreu interferências da mudança repentina dos conteúdos aos exames vestibulares de Jornalismo, na universidade pública, em 1970.

Fique mais um ano, meu bem! – é uma carta apaixonada a uma companheira e uma narrativa sobre a militância política.

Por entre mimosos jacarandás tem por narradora uma diretora de escola, integrante de um grupo de educadores progressistas que é punido por gestores autoritários.

1959, ganhos e perdastraz memórias de infância para situar a corrida espacial que gerou a tecnologia e mudou profundamente as relações entre pessoas próximas.

Multidãoretrata impressões sobre os invisíveis, as não identidades, os sem endereço.

Ei, cuidado, Fênix! – cântico para ninar pandêmicos. Relata os esforços existenciais para enfrentar notícias obtidas pelas diferentes mídias ou ouvidas do interlocutor, durante uma pandemia.

A terceira pessoa reporta ao jogo algoz versus vítima cujos lances incluem: ver no outro o que não consegue ver em si mesma, debater com o outro para sustentar a autoimagem, ter mau humor devido à insônia (ou insônia devido ao mau humor?), digladiar na arena Rede Social para não encarar sua insônia. No final, o espectro da autoajuda comparece mediado pela utopia.

Cotidemia, por meio da criação de um neologismo, narra o cotidiano durante a pandemia.

A Antífona, de Sócrates aborda o desprezo às fontes de pesquisa fidedignas, assim como o desconhecimento dos cânones da literatura e da Filosofia, para ilustrar a banalização da morte.

Espanto, microconto de inspiração no ritmo poético de Guimarães Rosa, intui os sofrimentos pandêmicos na percepção do sertanejo: “infinito é nada, dotô!”.

ESCRITA e escrita aborda com sensibilidade a importância do apoio materno na aprendizagem infantil.

Interminável é uma crônica poética sobre intermináveis dias e noites duma pandemia. Metalinguística, remete à autocensura do criador.

Pronto finalrefere à ferida narcísica, por um lado,e à sociedade da imagem, por outro. Assim como à finitude.

           Edna DomenicaMerola

               organizadora

Oficina de Leitura reflexiva do texto para teatro O crush da professora "Z" Maria de Edna Domenica Merola

 26/04/2022   O crush da Professora “Z” Maria   Tendo por chave o Teatro do Absurdo, relembro A Cantora Careca , de Ionesco, e pre...