Fábula Das belezas da democracia. Cassiano Silveira
O burro nasceu em um dia qualquer de um outubro qualquer, numa noite abafada de primavera, bem mais abafada do que deveria. Seu dono logo decidiu batizá-lo. Gostava de política e optou por chamá-lo de Presidente.
O animal cresceu e, tão logo estava apto a prestar serviços, foi posto a
puxar uma charretinha para levar o sitiante à cidade, chamada Surreália.
Garboso, o muar chamava a atenção por onde passava, mas quando se lhe dizia o
nome era um Deus nos acuda! Uns riam, achavam um nome muito
adequado e espirituoso. Outros consideravam ofensivo, desrespeitoso (as vezes
ao cargo, outras ao animal). Alguns gargalhavam, outros riam um riso amarelo.
Alguns não entendiam a piada, outros não alcançavam a seriedade do fato.
Curioso é que, a cada quatro anos, as opiniões das pessoas mudavam: o confeiteiro,
por exemplo, que no começo se lambuzava de tanto rir, em dado momento passou a
soltar fogo pelas ventas só de ouvir os cascos do bichinho batendo nas pedras
da rua.
Ocorre que, com o passar dos quadriênios, as reações das pessoas foram
ficando cada vez mais exageradas. Certa vez o burro foi pichado com palavras
ofensivas; o lavrador sofreu ameaças de espancamento e morte se não mudasse o
nome do animal; a dupla se viu mesmo obrigada a evitar certas ruas para
garantir sua integridade física.
A situação se agravou a tal ponto que ficou impossível ao animal ir à
cidade sem causar grande alvoroço. Privado de seu trabalho, que ao mesmo tempo
era seu principal meio de distração e atividade física, o burrico caiu em
profunda depressão. Com a imunidade abalada, prostrado pelos males
psicológicos, adoeceu gravemente. De chás a antibióticos, de novenas a rezas
brabas, de benzedeiras a cirurgiões-dentistas, nenhum recurso foi capaz de
curar-lhe a enfermidade.
Prolongou-se o sofrimento do burro por muitos meses. Em seu leito de
morte o quadrúpede, que era muito inteligente, conseguiu proferir suas
primeiras (e também últimas) palavras: pediu que o lavrador mudasse seu nome
para que, ao menos no além, pudesse descansar em paz.
Magnânimo, o lavrador acedeu, rebatizando-o como Democracia.
Com um sorriso, entregou-se o animal, aguardando fervorosamente poder
reencarnar num futuro melhor. Entre lágrimas, lamentou o sitiante:
– Adeus, Democracia... Espero que nos reencontremos um dia!
Referência
SILVEIRA, Cassiano. Das belezas da democracia. Coletânea Tudo poderia
ser diferente - inclusive o título. 2022, e-book Amazon KINDLE.
Comentários
Por Edna Domenica Merola
Das belezas da democracia é uma fábula que enfoca o voto livre para eleger o presidente como algo envolvido por animosidades e pichações. A democracia comparece como trabalhosa e extenuante até se tornar agonizante e morta, como anseio de ditadura.
Em Das belezas da democracia o narrador é onisciente e
utiliza o discurso indireto em quase todo o texto, salvo na última frase. O
discurso direto único ocorre numa fala do personagem “sitiante” “dono do burro”
que dele recebeu o nome de “Presidente”, sendo rebatizado de Democracia, em seu
leito de morte.
Pode-se considerar que a história é tragicômica, mostrando o que se
propõe com deboche.
Fábula de um único personagem animal chamado de “Presidente” pelo seu
dono, mas que se humaniza ao final sendo rebatizado de
“Democracia”.
A moral da fábula é expressa ao final do texto, com a fala do
“sitiante”: “– Adeus, Democracia... Espero que nos
reencontremos um dia!”
O texto coloca o diálogo (marcado pelo discurso direto) como uma atitude
singular.
Se considerarmos que a prática do diálogo é a base das relações democráticas, vale dizer que, para o universo do texto, a prática democrática inexiste.
Comentários de Rosilene Souza
Em Das belezas da democracia, Cassiano Silveira nos apresenta um cenário tragicômico. Lendo o texto e comparando com o cenário político atual encontramos situações muito semelhantes, apesar de que a política brasileira e latina se destacam pelos rastros e laços de sangue, corrupção, desigualdade dentre outros. As personagens (cada uma à sua maneira) nos descortinam atitudes que passam pela agressividade, cinismo, intolerância, etc. O ser humano de ontem e de hoje ( espero que o de amanhã seja diferente) agem de acordo com as suas conveniências (éticas e morais) se é que se pode classificá-las assim. Essa postura se destaca nas atitudes intolerantes e opressoras realizadas por alguns personagens. A situação chega a tal ponto que ao ser privado do trabalho/liberdade o burro adoece, ou seja, não resiste à pressão emocional, física e psicológica e vem a falecer. O dono do burro possui um espírito brincalhão e debochado, pois ao realizar o último desejo do companheiro de trabalho o rebatiza com o nome de democracia. Ironicamente Democracia morre, mas espero que tenha sido somente na fábula. Pois vivemos um ano eleitoral cuja democracia vem sendo ameaçada há mais de 4 anos. E tal qual o burro presidente espero que o sujo-eito que ocupa o cargo de presidente do país também parta. Parta para o raio que o parta. Nota-se que a agressão, o cinismo, etc, fazem parte do ser humano e que independente da situação socioeconomicocultural, as atitudes mostram quem é quem e que estas independem do lugar que se ocupa na sociedade.
Making of: Das belezas da democracia
Cassiano Silveira
Quando escrevi:
O texto foi escrito em 2018 e sofreu pequenos ajustes em 2021.
Como escrevi:
Recordei das corriqueiras piadas que comparavam os políticos brasileiros em geral a animais. Ouço esse tipo de comparação desde que me tenho por gente, mas se buscarmos fontes históricas veremos que a prática vem de longa data, de séculos atrás. Pessoalmente, presenciei um ápice dessa “modalidade irônica” nos primeiros anos da redemocratização brasileira, em fins dos anos 1980. Decidi então usar o recurso para discutir a atual radicalização do discurso político em nosso país.
Como equaciono realidade compactuada e criação ficcional nessa escrita:
A relação da população brasileira com sua classe política sempre foi conturbada (o que não é uma exclusividade do nosso país, diga-se de passagem). O hábito de comparar políticos e animais desde muito é uma forma de protesto e crítica, temperada com boa dose de ironia e sarcasmo. Tanto é que já tivemos ao menos dois animais com votações destacadas em eleições municipais brasileiras, na época do voto manual, quando se podia escrever o nome do candidato na cédula . Ainda podemos lembrar que alegorias literárias utilizadas em obras como “A revolução dos bichos”, de Orson Welles e “A metamorfose”, de Franz Kafka, onde os animais representam vários estereótipos humanos.
No entanto, nos tempos atuais percebo uma radicalização do discurso político, onde os opositores ao governo deixam de ser vistos como rivais e passam a ser considerados inimigos. Isso é um grave problema, pois incita um movimento de eliminar a oposição, solapando um princípio básico da democracia que é a liberdade política. E quando a situação passa a incitar o uso de violência (seja ela verbal ou física), a integridade do indivíduo fica em risco.
Foi isso que eu quis mostrar no texto. O sitiante fez uma ironia ao batizar seu animal como Presidente e fez isso num momento onde poderia expressar suas opiniões sem medo de retaliações. Estava porém, disposto a discutir com quem assim desejasse.
Com o passar dos ciclos políticos, a cada novo presidente as opiniões a favor e contra a ironia do nome mudavam, o que estaria relacionado com as filiações políticas de cada um: alguns mais conservadores, outros mais liberais; uns mais à esquerda, outros mais à direita. Mas quando as pessoas começam a ir para extremos, as coisas começam a se complicar. As ameaças ao burro pontuam o fim da liberdade de expressão, o fim da discussão política construtiva, o fim do diálogo. Isso não representa nada menos que o fim da democracia, representado pela morte do burro rebatizado. Assim, a despeito do que pode parecer num primeiro momento, o burro não representa a imagem dos presidentes da república, mas antes representa a democracia do nosso país. Representa a liberdade política.
Esse texto foi escrito em 2018 e desde então, vozes críticas às instituições democráticas vem elevando seu tom, mas não num sentido de discutir outros modelos políticos, e sim desejando o fim de um regime de livre escolha dos mandatários por parte do povo e a imposição de um governante que dirija o país sem mecanismos de contra-força, sem freios institucionais às suas vontades pessoais e ideais particulares. Curiosamente, uma grande parte da população está usando as vias democráticas para pedir uma ditadura. Infelizmente, não existe vice-versa.
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