quarta-feira, 28 de abril de 2021

Cuidado, povo, senão o metrô vem e te atropela! Cassiano Silveira.

 Cuidado, povo, senão o metrô vem e te atropela!

 Cassiano Silveira  (escritor e historiador)

Esses dias, enquanto conversávamos sobre tempos sombrios da história brasileira e referíamos diversas músicas que retratavam tal período, uma canção específica não me saía da cabeça. Estou falando de “Metrô linha 743”, de Raul Seixas.

Não pretendo aqui destrinchar a música, analisar versos ou estrofes. A ideia geral é bem clara, particularmente se lembrarmos de que a música foi escrita em 1984, no finalzinho da ditadura militar brasileira e assinada por um artista que nunca escondeu sua aversão por qualquer tipo de poder, particularmente os autoritários. “Metrô” fala sobre perseguir o livre pensamento, decepar as cabeças pensantes da sociedade (num sentido “geralmente” figurado...), calar aqueles que se opunham ao regime e não se deixavam ludibriar pela propaganda ufanista e pelo falso nacionalismo dos governantes e de uma parcela da população.

Vou colocar a letra abaixo:

 

Metrô Linha 743  (Raul Seixas)


Ele ia andando pela rua meio apressado

Ele sabia que tava sendo vigiado

Cheguei para ele e disse

Ei amigo, você pode me ceder um cigarro

Ele disse

Eu dou, mas vá fumar lá do outro lado

Dois homens fumando juntos

Pode ser muito arriscado

 

Disse o prato mais caro do melhor banquete

É o que se come cabeça de gente que pensa

E os canibais de cabeça descobrem aqueles que pensam

Porque quem pensa

Pensa melhor parado

Desculpe minha pressa

Fingindo atrasado

Trabalho em cartório mas sou escritor

Perdi minha pena nem sei qual foi o mês

 

Metrô linha 743


O homem apressado me deixou e saiu voando

Aí eu me encostei num poste e fiquei fumando

Três outros chegaram com pistolas na mão

Um gritou

Mão na cabeça malandro

Se não quiser levar chumbo quente nos cornos

Eu disse

Claro, pois não

Mas o que é que eu fiz

Se é documento eu tenho aqui...

 

Outro disse

Não interessa, pouco importa, fique aí

Eu quero saber o que você estava pensando

Eu avalio o preço me baseando no nível mental

Que você anda por aí usando

E aí eu lhe digo o preço que sua cabeça agora está custando


Minha cabeça caída, solta no chão

Eu vi meu corpo sem ela pela primeira e última vez

Metrô linha 743

 

Jogaram minha cabeça oca no lixo da cozinha

Eu era agora um cérebro

Um cérebro vivo à vinagrete

 

Meu cérebro logo pensou

Que seja, mas nunca fui tiéte

Fui posto à mesa com mais dois

E eram três pratos raros, e foi o maitre que pôs

Senti horror ao ser comido com desejo por um senhor alinhado

Meu último pedaço, antes de ser engolido ainda pensou grilado

Quem será este desgraçado dono desta zorra toda?

 

Já tá tudo armado, o jogo dos caçadores canibais

Mas o negócio é que tá muito bandeira

Tá bandeira demais meu Deus

Cuidado brother

Cuidado sábio senhor

É um conselho sério pra vocês

Eu morri e nem sei mesmo

Qual foi aquele mês

 Ah, Metrô linha 743

 

Para mim, essa música é especial (tudo bem, como grande fã de Raulzito, sou suspeito “pra” falar). Não digo que ela seja mais profunda, ou mais crítica, ou mais emocionante que tantas outras produzidas numa época tão profícua de grandes compositores e intérpretes. O que me surpreende nessa música é o quanto ela é atual. Não me refiro apenas aos últimos dois ou três anos... o “jogo dos canibais” já tá sendo armado há muito tempo. Puxe pela memória: desde “mensalões” cuja real origem cronológica foi escamoteada até um lava-jatismo deslumbrado e míope, passando pelo gaslighting* sofrido por importante figura feminina, pedaladas fiscais cuja relevância varia de acordo com o vento e golpes institucionais com odes a torturadores. Todo um cenário intencionalmente construído para convencer a população de que era necessário defenestrar o grupo político no poder a qualquer custo.

 

Bem, o custo agora parece bem alto, mas o cenário não mudou muito e todos aqueles que usam um “nível mental” um pouco mais elevado tem sua cabeça visada pelos “canibais de cabeça”. A PF está aparentemente instrumentalizada, conduzindo vozes opositoras para prestar depoimento por declarações políticas; declarações escandalosas do “Inominável” estampam manchetes de todos os meios de comunicação e nada é feito efetivamente; o judiciário agora quer ser o grande guardião da democracia, mas esteve omisso (cúmplice) ao longo de todo o processo que culminou nessa “zorra toda”. A lista de evidências de um perigoso autoritarismo que vem se instalando no país poderia ser alongada indefinidamente, mas não é esse o objetivo. O que percebo é que o “maitrê” está ansioso por servir os pratos mais apetitosos e o “senhor alinhado” está com muita fome! O pior é que o negócio “tá muito bandeira/Tá bandeira demais, meu Deus”, e mesmo assim tem gente que não quer ver.

 

Por fim, fica o sábio conselho do velho Raulzito, que devemos ter sempre em mente, enquanto preservamos nossa cabeça pensante: “Cuidado brother/Cuidado sábio senhor”...


Ilustração de Cassiano

Casiano Silveira. Nascido em Floripa/SC (1980) e atualmente morador da vizinha cidade de Palhoça, formou-se historiador e atuou na área da arqueologia por mais de 10 anos. Interessou-se por livros e ilustrações desde tenra idade, tendo lido inúmeros romances e escrito umas tantas poesias quando adolescente. As poesias foram destruídas em um arroubo passional dos tempos de recém-casado (Declara-se: –Amo-te cada dia mais, Mony!), mas a influência de Mário Quintana permaneceu.  A ironia de Luiz Fernando Veríssimo também deixou marcas em sua produção textual. Entre 2016 e 2017 trouxe a público, através do Facebook, as tirinhas cômicas “Os Cabeçudos”, discutindo sobre o cotidiano de forma um tanto nonsense. Ainda em 2017 nasceu o até agora único filho, que virou de cabeça para baixo – e para muito melhor – sua vida. Publicou artigos científicos e poemas em várias revistas e coletâneas (destacam-se o artigo Os Caixões Fúnebres na Capela de Nossa Senhora das Dores: Uso e Tipologia, Revista Tempos Acadêmicos, 2012; e os poemas Cama de Mármore, Revista Poité, 2006; Velório, PerSe, 2021 e Olho-mar, PerSe, 2021). 

Dedica-se hoje à produção de textos (entre poesias e contos), capas e ilustrações.


3 comentários:

  1. Parabéns Cassiano, em poucas palavras um resgate belíssimo.👏👏👏👏

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  2. Em uma história fizeste um livro .parabens

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