Cuidado, povo, senão o metrô vem e te atropela!
Esses dias, enquanto conversávamos sobre tempos sombrios da história brasileira e referíamos diversas músicas que retratavam tal período, uma canção específica não me saía da cabeça. Estou falando de “Metrô linha 743”, de Raul Seixas.
Não
pretendo aqui destrinchar a música, analisar versos ou estrofes. A ideia geral
é bem clara, particularmente se lembrarmos de que a música foi escrita em 1984,
no finalzinho da ditadura militar brasileira e assinada por um artista que
nunca escondeu sua aversão por qualquer tipo de poder, particularmente os
autoritários. “Metrô” fala sobre perseguir o livre pensamento, decepar as
cabeças pensantes da sociedade (num sentido “geralmente” figurado...), calar
aqueles que se opunham ao regime e não se deixavam ludibriar pela propaganda
ufanista e pelo falso nacionalismo dos governantes e de uma parcela da
população.
Vou
colocar a letra abaixo:
Metrô
Linha 743
Ele ia andando pela rua meio apressado
Ele
sabia que tava sendo vigiado
Cheguei
para ele e disse
Ei
amigo, você pode me ceder um cigarro
Ele
disse
Eu
dou, mas vá fumar lá do outro lado
Dois
homens fumando juntos
Pode
ser muito arriscado
Disse
o prato mais caro do melhor banquete
É
o que se come cabeça de gente que pensa
E
os canibais de cabeça descobrem aqueles que pensam
Porque
quem pensa
Pensa
melhor parado
Desculpe
minha pressa
Fingindo
atrasado
Trabalho
em cartório mas sou escritor
Perdi
minha pena nem sei qual foi o mês
Metrô linha 743
O homem apressado me deixou e saiu voando
Aí
eu me encostei num poste e fiquei fumando
Três
outros chegaram com pistolas na mão
Um
gritou
Mão
na cabeça malandro
Se
não quiser levar chumbo quente nos cornos
Eu
disse
Claro,
pois não
Mas
o que é que eu fiz
Se
é documento eu tenho aqui...
Outro
disse
Não
interessa, pouco importa, fique aí
Eu
quero saber o que você estava pensando
Eu
avalio o preço me baseando no nível mental
Que
você anda por aí usando
E
aí eu lhe digo o preço que sua cabeça agora está custando
Minha cabeça caída, solta no chão
Eu
vi meu corpo sem ela pela primeira e última vez
Metrô
linha 743
Jogaram
minha cabeça oca no lixo da cozinha
Eu
era agora um cérebro
Um
cérebro vivo à vinagrete
Meu
cérebro logo pensou
Que
seja, mas nunca fui tiéte
Fui
posto à mesa com mais dois
E
eram três pratos raros, e foi o maitre que pôs
Senti
horror ao ser comido com desejo por um senhor alinhado
Meu
último pedaço, antes de ser engolido ainda pensou grilado
Quem será este desgraçado dono desta zorra toda?
Já tá tudo armado, o jogo dos caçadores canibais
Mas
o negócio é que tá muito bandeira
Tá
bandeira demais meu Deus
Cuidado
brother
Cuidado
sábio senhor
É
um conselho sério pra vocês
Eu
morri e nem sei mesmo
Qual
foi aquele mês
Para
mim, essa música é especial (tudo bem, como grande fã de Raulzito, sou suspeito
“pra” falar). Não digo que ela seja mais profunda, ou mais crítica, ou mais
emocionante que tantas outras produzidas numa época tão profícua de grandes
compositores e intérpretes. O que me surpreende nessa música é o quanto ela é
atual. Não me refiro apenas aos últimos dois ou três anos... o “jogo dos
canibais” já tá sendo armado há muito tempo. Puxe pela memória: desde
“mensalões” cuja real origem cronológica foi escamoteada até um lava-jatismo
deslumbrado e míope, passando pelo gaslighting* sofrido por importante figura
feminina, pedaladas fiscais cuja relevância varia de acordo com o vento e
golpes institucionais com odes a torturadores. Todo um cenário intencionalmente
construído para convencer a população de que era necessário defenestrar o grupo
político no poder a qualquer custo.
Bem,
o custo agora parece bem alto, mas o cenário não mudou muito e todos aqueles
que usam um “nível mental” um pouco mais elevado tem sua cabeça visada pelos
“canibais de cabeça”. A PF está aparentemente instrumentalizada, conduzindo
vozes opositoras para prestar depoimento por declarações políticas; declarações
escandalosas do “Inominável” estampam manchetes de todos os meios de comunicação
e nada é feito efetivamente; o judiciário agora quer ser o grande guardião da
democracia, mas esteve omisso (cúmplice) ao longo de todo o processo que
culminou nessa “zorra toda”. A lista de evidências de um perigoso autoritarismo
que vem se instalando no país poderia ser alongada indefinidamente, mas não é
esse o objetivo. O que percebo é que o “maitrê” está ansioso por servir os
pratos mais apetitosos e o “senhor alinhado” está com muita fome! O pior é que
o negócio “tá muito bandeira/Tá bandeira demais, meu Deus”, e mesmo assim tem
gente que não quer ver.
Por
fim, fica o sábio conselho do velho Raulzito, que devemos ter sempre em mente,
enquanto preservamos nossa cabeça pensante: “Cuidado brother/Cuidado sábio
senhor”...
Ilustração de Cassiano |
Casiano Silveira. Nascido em Floripa/SC (1980) e atualmente morador da vizinha cidade de Palhoça, formou-se historiador e atuou na área da arqueologia por mais de 10 anos. Interessou-se por livros e ilustrações desde tenra idade, tendo lido inúmeros romances e escrito umas tantas poesias quando adolescente. As poesias foram destruídas em um arroubo passional dos tempos de recém-casado (Declara-se: –Amo-te cada dia mais, Mony!), mas a influência de Mário Quintana permaneceu. A ironia de Luiz Fernando Veríssimo também deixou marcas em sua produção textual. Entre 2016 e 2017 trouxe a público, através do Facebook, as tirinhas cômicas “Os Cabeçudos”, discutindo sobre o cotidiano de forma um tanto nonsense. Ainda em 2017 nasceu o até agora único filho, que virou de cabeça para baixo – e para muito melhor – sua vida. Publicou artigos científicos e poemas em várias revistas e coletâneas (destacam-se o artigo Os Caixões Fúnebres na Capela de Nossa Senhora das Dores: Uso e Tipologia, Revista Tempos Acadêmicos, 2012; e os poemas Cama de Mármore, Revista Poité, 2006; Velório, PerSe, 2021 e Olho-mar, PerSe, 2021).
Dedica-se hoje à produção de textos (entre poesias e contos), capas e ilustrações.
Parabéns Cassiano, em poucas palavras um resgate belíssimo.👏👏👏👏
ResponderExcluirGrato pelo elogio, mas... quem és tu?
ExcluirEm uma história fizeste um livro .parabens
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