segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Oficina de Leitura Reflexiva da crônica Voo Cego de Gilberto Motta

 Voo cego

Gilberto Motta*

 

– CAPITÃO, não há condições de pouso.

– Pô, cara, larga a mão de covardia...desce esse treco aí...

– Não enxergo nada. A fumaça não oferece segurança, SENHOR!

– Como não? E os instrumentos? Não estão funcionando, cacete?

– Funcionam, mas a pista é péssima e tá tudo queimando lá embaixo, meu CAPITÃO!

– FOGO? Onde, cara? Nada... Tô vendo um monte de barcos no rio grande... Olha lá, pô...lindo!

– Não são barcos...são bois mortos, boiando, SENHOR!

– Tá loco, cara?!...olha as árvores...milhares de pés de tangerina madurinhas, amarelinhas!

– SENHOR, são árvores pegando fogo, meu CAPITÃO!

– O MOCUREBA! Tá delirando? Fumou cigarrinho de comunista? Olha que céu de brigadeiro, covardão...desce essa merda logo!

– Perdão, SENHOR, mas é fogo...tá um céu de goiabada...vermelho! O risco é grande, CAPITÃO!

– PORRA, IMBECIL...dá um jeito aí! a... a merda da imprensa tá lá embaixo. Desce essa coisa de uma vez!….

– Vamos subir...subir, SENHOR! Subirrr….

– CALA A BOCA! DESCE, MAJOR! TÔ MANDANDO!...Lá embaixo a gente toma uma Tubaína pra comemorar, tá?

– Em 5, SENHOR...1, 2, 3, 4.... ARREMETENDO, meu CAPITÃO!

...

Vinte minutos após, a aeronave tocou o chão da pista chamuscada e o capitão fala à imprensa:

– Tinha umas fogueirinhas, mas todo ano tem...quer saber? E daí, pô? NÓS SOMOS UM EXEMPLO PARA O MUNDO.


Referência

MOTTA, Gilberto Pinto. Voo Cego. Coletânea Tudo poderia ser diferente - inclusive o título. 2022, e-book Amazon KINDLE.


*Gilberto Motta nasceu e cresceu em um circo-teatro dos pais onde foi ator, músico, palhacinho e cantor mirim. Começou na rádio Piratinga de Tupã, interior de São Paulo. Cursou a Faculdade Cásper Líbero/SP de jornalismo e trabalhou em rádio, jornais e TV em SP e SC. É compositor, escritor, poeta, jornalista, professor, mestre em mídia e conhecimento, consultor/palestrante e pesquisador cultural. Realiza cursos e oficinas literárias, TV, rádio, cinema e redes sociais. Documentarista audiovisual, especializado em multimídias e comunicação digital, educação e comunicação para multiplataformas. Nos últimos anos, publicou em e-book (Amazon) a novela infanto-juvenil “A Incrível Jornada da Menina Careca”, as memórias sobre os pais “Céu de vaga-lumes: lembranças e Andanças de Motinha e Nhá Fia e o Circo Imaginário”, além de integrar a coletânea Tudo poderia ser diferente, e-book Amazon, 2022. Prepara atualmente o livro “Vamos Fazer uma Boa Tarde”: Mário Motta, do picadeiro circense ao picadeiro eletrônico do Jornal Nacional”.



Questões colocadas por Edna Domenica Merola

 Você considera esse texto cômico, trágico ou tragicômico?


A tragicomédia foi amplamente difundida no teatro clássico. Caracteriza-se pela combinação de elementos dramáticos e cômicos.

O lado cômico da tragicomédia expressa rejeição, mostrando algo com deboche, recorre à paródia, na qual recria-se um personagem ou um fato de maneira grotesca.

Na Grécia Antiga, a tragicomédia utilizava o coro para comentar as cenas e representar o público na participação da peça teatral.

Geralmente há um herói que age em prol da justiça social e depois de muito sofrimento tem um final é feliz.

Referência

Editorial QueConceito. São Paulo. Disponível em:

 https://queconceito.com.br/tragicomedia. Acesso em: [21/02/2022]

Vale ressaltar que na linguagem coloquial, a tragicomédia se refere a situações reais da vida que mesclam elementos trágicos com cômicos.

 

Como o uso da ironia impacta a narrativa de Voo Cego?

Em retórica, “ironia” consiste em dizer o oposto do que se pretende comunicar ou em possibilitar uma interpretação diferente do significado superficial das palavras. Ao contrário de outras figuras de linguagem [...], a ironia não difere de uma simples frase denotativa em nenhum aspecto verbal. A ironia é reconhecida apenas no momento da interpretação. (LODGE, 2011, p. 186).  

 

Referência

LODGE, David. A arte da ficção. Trad Bras Guilherme da Silva Braga. L&PM Pocket, 2011. P 186.

 

Como "mostrar e dizer" acontecem em Voo Cego de Gilberto Motta? Como a maestria do cronista equaciona o uso do discurso direto no texto?

 O que isso implica na descrição dos personagens e no uso de roteiro?

 

“O discurso ficcional alterna o tempo inteiro entre mostrar e dizer o que aconteceu. A forma mais pura de se mostrar são as falas dos personagens, em que a linguagem espelha com precisão o acontecimento (uma vez que o acontecimento é linguístico).” (LODGE, 2011, p 130).

O discurso direto é uma transcrição exata da fala das personagens que se apoia no uso de verbos de elocução para indicação de como ocorreu a fala (gritar, murmurar; perguntar, retrucar; etc).  Em Voo Cego, o autor não usa os verbos de elocução e outros recursos indicativos são utilizados, a exemplo da diagramação em caixa alta e, principalmente, pela caracterização dos personagens.

A maneira comum de apresentar personagens é “descrever seus traços físicos e fornecer ao leitor um resumo biográfico”. Alguns autores contemporâneos “preferem que os fatos sobre os personagens venham à tona aos poucos, de diferentes formas, ou então que sejam depreendidos a partir de ações e falas. De qualquer modo, toda descrição ficcional é altamente seletiva; a técnica retórica é a sinédoque – a parte que assume o lugar do todo.”

Paradoxalmente, o personagem de patente subalterna usa linguagem grotesca com o de patente superior à sua, consumando a demonstração de poder que tem naquele “voo” até sobre a vida do piloto.

Em Voo Cego há rupturas na linearidade narrativa que se assemelham a cortes cênicos cinematográficos. O uso de roteiro deixa o narrador “livre da obrigação de julgar e arbitrar as vontades dos [...] protagonistas, pois não há resquícios textuais da voz autoral em um roteiro, uma vez que consiste apenas de diálogos e descrições objetivas e impessoais do comportamento visível dos personagens.” (LODGE, 2011, p 235).

 

Referências

LODGE, David. A arte da ficção. Trad Bras Guilherme da Silva Braga. L&PM Pocket, 2011. 

 NEVES, Flávia. NORMA CULTA. Discurso Direto. Disponível em

 https://www.normaculta.com.br/discurso-direto/

 

 Como o autor de Voo Cego descreve narra, disserta (avalia), deixa aflorar sua veia poética em prosa?


O gênero textual crônica

                                     Edna Domenica Merola

 

[...] e me pediram uma receita rápida sobre a escrita desse gênero [crônica]. Dei a que segue: descreva, narre, disserte, aflore sua veia poética em prosa... (Ah! Não precisa ser nessa ordem!).

Mas o que é descrever, quando se trata de crônica? Descrever é buscar lugares descritivos. Na descrição há elementos para a realização de fatos, mas não ocorre a interação entre os elementos (por exemplo, o diálogo entre os personagens).

O que é narrar? É escolher um foco para uma escrita constituída basicamente de verbos que expressam ação e encadeiam causas e consequências, revelando a interação de elementos para a realização de fatos.

O que é dissertar? É buscar pertencimento a comunidades argumentativas sendo necessária a predominância da disposição lógica de indícios, suposições, deduções, e opiniões que busquem respaldar um conjunto de sequências argumentativas. O que é veia poética? É a responsável maior pelo viés autobiográfico da crônica, pois expressa a visão de mundo do cronista.

Se essa “receita” não foi suficiente há sempre a possibilidade de buscar outras... Afinal há quem diga que vale a pena, já que ser cronista foi uma profissão real... Até onde eu sei o cargo de cronista Mor do Reino foi uma oportunidade profissional e tanto na época do Fernão Lopes (1434), assim como na de Gomes Eanes de Azurara (1454)... Pero Vaz de Caminha também teve seus momentos de fama como cronista por ocasião da invasão portuguesa às terras tupiniquins, em 1500. (Como isso foi chamado de descoberta do Brasil também por historiadores, vê-se que o uso de eufemismos e de outras figuras de linguagem não é prerrogativa exclusiva de poetas.).

Mas para o cronista em idioma português a “mamata” (ou o período áureo da profissão de cronista da realeza) acabou em 1580 com a integração do reino de Portugal à coroa de Espanha. Esperando, com paciência histórica, que as coisas melhorem, vou em frente nessa tourada! E só posso terminar com: 

‒ Olé!

 

MEROLA, Edna Domenica. Crônica e senso comum (Cronologia da confusão sobre foco narrativo). Disponível em

https://aquecendoaescrita.blogspot.com/2012/11/cronologia-da-confusao-sobre-foco.html


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Sobre o escritor Gilberto Motta. Por Edna Domenica Merola

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