Voo cego
Gilberto
Motta*
–
CAPITÃO, não há condições de pouso.
–
Pô, cara, larga a mão de covardia...desce esse treco aí...
–
Não enxergo nada. A fumaça não oferece segurança, SENHOR!
–
Como não? E os instrumentos? Não estão funcionando, cacete?
–
Funcionam, mas a pista é péssima e tá tudo queimando lá embaixo, meu CAPITÃO!
–
FOGO? Onde, cara? Nada... Tô vendo um monte de barcos no rio grande... Olha lá,
pô...lindo!
–
Não são barcos...são bois mortos, boiando, SENHOR!
–
Tá loco, cara?!...olha as árvores...milhares de pés de tangerina madurinhas,
amarelinhas!
–
SENHOR, são árvores pegando fogo, meu CAPITÃO!
–
O MOCUREBA! Tá delirando? Fumou cigarrinho de comunista? Olha que céu de
brigadeiro, covardão...desce essa merda logo!
–
Perdão, SENHOR, mas é fogo...tá um céu de goiabada...vermelho! O risco é
grande, CAPITÃO!
–
PORRA, IMBECIL...dá um jeito aí! a... a merda da imprensa tá lá embaixo. Desce
essa coisa de uma vez!….
–
Vamos subir...subir, SENHOR! Subirrr….
–
CALA A BOCA! DESCE, MAJOR! TÔ MANDANDO!...Lá embaixo a gente toma uma Tubaína
pra comemorar, tá?
–
Em 5, SENHOR...1, 2, 3, 4.... ARREMETENDO, meu CAPITÃO!
...
Vinte
minutos após, a aeronave tocou o chão da pista chamuscada e o capitão fala à
imprensa:
–
Tinha umas fogueirinhas, mas todo ano tem...quer saber? E daí, pô? NÓS SOMOS UM
EXEMPLO PARA O MUNDO.
Referência
MOTTA, Gilberto Pinto. Voo Cego. Coletânea Tudo poderia ser diferente - inclusive o título. 2022, e-book Amazon KINDLE.
*Gilberto Motta nasceu e cresceu em um circo-teatro dos pais onde foi ator, músico, palhacinho e cantor mirim. Começou na rádio Piratinga de Tupã, interior de São Paulo. Cursou a Faculdade Cásper Líbero/SP de jornalismo e trabalhou em rádio, jornais e TV em SP e SC. É compositor, escritor, poeta, jornalista, professor, mestre em mídia e conhecimento, consultor/palestrante e pesquisador cultural. Realiza cursos e oficinas literárias, TV, rádio, cinema e redes sociais. Documentarista audiovisual, especializado em multimídias e comunicação digital, educação e comunicação para multiplataformas. Nos últimos anos, publicou em e-book (Amazon) a novela infanto-juvenil “A Incrível Jornada da Menina Careca”, as memórias sobre os pais “Céu de vaga-lumes: lembranças e Andanças de Motinha e Nhá Fia e o Circo Imaginário”, além de integrar a coletânea Tudo poderia ser diferente, e-book Amazon, 2022. Prepara atualmente o livro “Vamos Fazer uma Boa Tarde”: Mário Motta, do picadeiro circense ao picadeiro eletrônico do Jornal Nacional”.
Questões
colocadas por Edna
Domenica Merola
– Você considera esse texto cômico, trágico ou tragicômico?
A tragicomédia foi amplamente difundida no teatro clássico. Caracteriza-se pela combinação de elementos dramáticos e cômicos.
O
lado cômico da tragicomédia expressa rejeição, mostrando algo com deboche,
recorre à paródia, na qual recria-se um personagem ou um fato de maneira
grotesca.
Na Grécia Antiga, a tragicomédia utilizava o coro para comentar as cenas e representar o público na participação da peça teatral.
Geralmente
há um herói que age em prol da justiça social e depois de muito sofrimento tem
um final é feliz.
Referência
Editorial
QueConceito. São Paulo. Disponível em:
https://queconceito.com.br/tragicomedia. Acesso em: [21/02/2022]
Vale
ressaltar que na linguagem coloquial, a tragicomédia se refere a situações
reais da vida que mesclam elementos trágicos com cômicos.
– Como o uso da ironia impacta a narrativa de Voo
Cego?
Em retórica, “ironia” consiste em dizer o oposto do
que se pretende comunicar ou em possibilitar uma interpretação diferente do
significado superficial das palavras. Ao contrário de outras figuras de
linguagem [...], a ironia não difere de uma simples frase denotativa em nenhum
aspecto verbal. A ironia é reconhecida apenas no momento da interpretação.
(LODGE, 2011, p. 186).
Referência
LODGE, David. A arte da ficção. Trad Bras Guilherme
da Silva Braga. L&PM Pocket, 2011. P 186.
Como "mostrar e dizer" acontecem em Voo Cego de Gilberto Motta? Como a maestria do cronista equaciona o uso do discurso direto no texto?
O que isso
implica na descrição dos personagens e no uso de roteiro?
“O discurso ficcional alterna o tempo inteiro entre
mostrar e dizer o que aconteceu. A forma mais pura de se mostrar são as falas
dos personagens, em que a linguagem espelha com precisão o acontecimento (uma
vez que o acontecimento é linguístico).” (LODGE, 2011, p 130).
O discurso direto é uma transcrição
exata da fala das personagens que se apoia no uso de verbos de elocução para
indicação de como ocorreu a fala (gritar, murmurar; perguntar, retrucar; etc). Em Voo Cego, o autor não usa os
verbos de elocução e outros recursos indicativos são utilizados, a exemplo da
diagramação em caixa alta e, principalmente, pela caracterização dos
personagens.
A maneira comum de apresentar personagens é
“descrever seus traços físicos e fornecer ao leitor um resumo biográfico”.
Alguns autores contemporâneos “preferem que os fatos sobre os personagens
venham à tona aos poucos, de diferentes formas, ou então que sejam depreendidos
a partir de ações e falas. De qualquer modo, toda descrição ficcional é
altamente seletiva; a técnica retórica é a sinédoque – a parte que assume o
lugar do todo.”
Paradoxalmente, o personagem de patente subalterna
usa linguagem grotesca com o de patente superior à sua, consumando a
demonstração de poder que tem naquele “voo” até sobre a vida do piloto.
Em Voo Cego há rupturas na linearidade
narrativa que se assemelham a cortes cênicos cinematográficos. O uso de roteiro
deixa o narrador “livre da obrigação de julgar e arbitrar as vontades dos [...]
protagonistas, pois não há resquícios textuais da voz autoral em um roteiro,
uma vez que consiste apenas de diálogos e descrições objetivas e impessoais do
comportamento visível dos personagens.” (LODGE, 2011, p 235).
Referências
LODGE, David. A arte da ficção. Trad Bras Guilherme da Silva Braga. L&PM Pocket, 2011.
https://www.normaculta.com.br/discurso-direto/
O gênero textual crônica
Edna Domenica Merola
[...] e me pediram uma receita rápida sobre a escrita desse gênero [crônica]. Dei a que segue:
descreva, narre, disserte, aflore sua veia poética em prosa... (Ah! Não precisa
ser nessa ordem!).
Mas o que é descrever, quando se trata de crônica?
Descrever é buscar lugares descritivos. Na descrição há elementos para a
realização de fatos, mas não ocorre a interação entre os elementos (por
exemplo, o diálogo entre os personagens).
O que é narrar? É escolher um foco para uma escrita
constituída basicamente de verbos que expressam ação e encadeiam causas e
consequências, revelando a interação de elementos para a realização de fatos.
O que é dissertar? É buscar pertencimento a
comunidades argumentativas sendo necessária a predominância da disposição
lógica de indícios, suposições, deduções, e opiniões que busquem respaldar um
conjunto de sequências argumentativas. O que é veia poética? É a responsável
maior pelo viés autobiográfico da crônica, pois expressa a visão de mundo do cronista.
Se essa “receita” não foi suficiente há sempre a
possibilidade de buscar outras... Afinal há quem diga que vale a pena, já que
ser cronista foi uma profissão real... Até onde eu sei o cargo de cronista
Mor do Reino foi uma oportunidade profissional e tanto na época do Fernão Lopes
(1434), assim como na de Gomes Eanes de Azurara (1454)... Pero Vaz de Caminha
também teve seus momentos de fama como cronista por ocasião da invasão
portuguesa às terras tupiniquins, em 1500. (Como isso foi chamado de descoberta
do Brasil também por historiadores, vê-se que o uso de eufemismos e de outras
figuras de linguagem não é prerrogativa exclusiva de poetas.).
Mas para o cronista em idioma português a “mamata”
(ou o período áureo da profissão de cronista da realeza) acabou em 1580 com a integração do reino de Portugal à coroa de Espanha.
Esperando, com paciência histórica, que as coisas melhorem, vou em frente nessa
tourada! E só posso terminar com:
‒ Olé!
MEROLA, Edna Domenica. Crônica e senso comum
(Cronologia da confusão sobre foco narrativo). Disponível em
https://aquecendoaescrita.blogspot.com/2012/11/cronologia-da-confusao-sobre-foco.html
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