29/03/2022: Carta
a um desconhecido. Gilberto Motta.
Carta a um Desconhecido
I - Boa noite, Sr.
Desconhecido,
São duas horas da matina.
Estou com insônia, talvez medo. A sexta-feira 17, começou como se fosse
sexta-feira 13:
– O Brasil é ingovernável
sem conchavos.
– Bomba! Bomba!
II- O dono da frase – em
carta postada no WhatsApp e Witter – foi um certo "autor
desconhecido" e o texto foi enviado, de acordo com a “imprensa
sensacionalista e vendida”, pelo senhor pessoalmente.
– Sim! O senhor mesmo...a
alguns grupos de seus fanáticos seguidores nas redes para que eles divulgassem,
através dos robôs virtuais, ao resto do país.
III- Segundo o seu texto,
Capitão...ops!...o texto do "autor desconhecido", o "País está
disfuncional".
Estou tentando entender o
que o senhor quis realmente dizer.
– Frase profunda, senhor.
Não cheguei ainda a
nenhuma conclusão definitiva.
Talvez se o senhor
falasse sobre forças ocultas ou renúncia, com os meus parcos conhecimentos de
História do Brasil eu conseguiria fazer algumas conexões, uns links, quem sabe
inferências.
Mas também, a esta hora
da madrugada, senhor, não sei mais se estou com insônia, com pavor ou se
continuo bebendo até dormir.
IV- No contexto atual,
pode-se afirmar que é um documento explosivo, pois tem o potencial de uma
carta-bomba.
Tá...carta-tsunami é mais
suave, não...em ondas.
Seria mais fiel ao
difícil momento de enchentes e vazantes dos fatos e fotos e fakes que
historicamente teimam em se repetir em seu desgoverno desastroso e que já
carrega quase 300 mil cadáveres inocentes e desnecessários nesses dois anos de
congestão pandêmica sob o teu mando.
Como? O senhor acha mais
apropriado carta-S.O.S.?
– Não?…
– Tá: carta-desabafo.
– Prepara-se a
carta-Golpe?
– Tobey.
V- Hora de descansar, Sr.
Desconhecido.
Sejamos práticos: deixemos
arrumadinha umas trocas na pequena mala.
Vamos separar a escova de
dentes, o casaco de emergência, o coturno e deixar a Grande Famiglia de
sobreaviso.
– Não, não se
preocupe...será apenas por precaução, tá?
E, por favor, também
deixe acesas todas as luzes da grande casa.
VI - São seis horas da
manhã. A insônia parece melhorar. A tragédia geral e o medo não. Bom dia, Sr.
Desconhecido...
E a nave negacionista
vai...
E com ela, 212 milhões de
seres humanos e o país.
– O gênero carta. Edna Domenica Merola
“À
revelia de que, na criação de uma carta literária, inventa-se o emissor, o
destinatário e a mensagem, uma carta inventada é igual a uma carta real e isso
dá um toque especial a tal gênero literário.
Do ângulo
do emissor, a carta reporta-se ao tempo presente. O discurso epistolar antecipa
uma resposta a vários destinatários lembrando um texto de teatro em formato de
monólogo: ouvimos um lado e inventamos sua continuidade em resposta.
A escrita
é representação da realidade pelo viés da voz do narrador. O trabalho de
escrita pode ser visto como um artesanato da palavra a serviço da
contemporização de memórias e opiniões. Com a prática da introspecção, o
emissor poderá organizar os condutores de sua criação que nunca é a realidade
em si, e sim a representação de algo que pode ter sido vivido como real no
passado, mas que é resgatado sob o viés do tempo ‒ cronológico e existencial ‒
da escrita[e1] .” (MEROLA,
2021, p 81)
Referência
MEROLA, Edna Domenica. A uma colega.
Coletânea Cartas não escritas. Apparere, 2021, p 81.
No texto, o emissor da carta “resposta” conta sua
noite de insônia enquanto repete (com contrariedade) o que o “Senhor” teria dito na carta
“inicial” (anônima e pública). Pode-se dizer que há presença
de um narratário no texto Carta a um desconhecido?
As histórias são feitas por criadores
de protagonistas, de testemunhas, de observadores, de narradores e de narratários.
Histórias são escritas por quem as ouviu ou viveu, por quem imaginou que ouviu
ou imaginou que viveu. Ou por quem brincou de fazer de conta que delas
participou de alguma das formas mencionadas. Histórias são feitas por criadores
que dialogam com a realidade e a ficção. (MEROLA, 2014,
p 92).
Ao perguntarmos quem é o ser que
narra uma história escrita, a resposta óbvia é dizer que é um eu que o faz. No
entanto, identificar as representações envolvidas num determinado contexto
narrativo demanda um esforço de análise.
[...]
Se a temática é contemporânea e se o
narrador é onisciente, isso fará o leitor supor que o texto é autobiográfico. O
viés recorrente é a leitura de mundo que os autores expressam na construção da
ficção sob a própria percepção do momento social. Ora, o que é vivido
coletivamente no cotidiano é chamado de realidade. No entanto, a narrativa
representa a realidade, não sendo idêntica a ela.
É contemporâneo pressupor que o lugar
narrativo (de onde e de quem parte a história narrada) é mais apelativo do que
o conteúdo anedótico daquilo que é exposto, descrito, narrado. [...]
É um desafio para os escritores
distinguir os papéis de autor e narrador. Essa conscientização pode auxiliar a
construir o texto de forma a afirmar que a diferenciação é válida ou que, ao
contrário, se trata de uma narrativa autobiográfica. O autor poderá também
criar um narrador com condições para construir uma narrativa que instale essa
dúvida no leitor, fazendo disso material estético.
Na literatura brasileira do século
XIX, a apóstrofe caro leitor, marca do contista brasileiro Machado de
Assis, configura a existência de um narratário ou substituto do leitor no
próprio texto.
Esse complementar do narrador –
típico dos romancistas vitorianos – é um “artifício retórico, uma forma de
controlar e complicar as respostas do leitor real, que permanece fora do
texto.” (LODGE. 2011. P. 90).
LODGE, David. A arte da ficção. Trad Bras Guilherme
da Silva Braga. L&PM Pocket, 2011.
MEROLA, Edna Domenica. O
leitor na pele do narrador. Disponível em
https://netiamigo.blogspot.com/2019/07/o-leitor-na-pele-do-personagem-narrador.html
MEROLA, Edna Domenica. De que são feitas
as histórias. Postmix, 2014.
Como se dá a intertextualidade em Carta a um
desconhecido?
“Alguns teóricos acreditam que a intertextualidade
é a própria condição da literatura – que todos os textos são tecidos com os
fios de outros textos, independente de seus autores estarem ou não cientes.”
(LODGE, 2011, p. 106).
O texto é estruturado como resposta a uma carta
anônima. O emissor da resposta se apropria do discurso contido na carta que não
foi mostrada ao leitor, para criticá-la e se opor a ela com ironia.
Em retórica, “ironia” consiste em dizer o oposto do
que se pretende comunicar ou em possibilitar uma interpretação diferente do
significado superficial das palavras. Ao contrário de outras figuras de
linguagem [...], a ironia não difere de uma simples frase denotativa em nenhum
aspecto verbal. A ironia é reconhecida apenas no momento da interpretação.
(LODGE, 2011, p. 186).
Referência
LODGE, David. A arte da ficção. Trad Bras Guilherme
da Silva Braga. L&PM Pocket, 2011.
SILVA, Débora. Estudo prático. Disponível
em https://www.estudopratico.com.br/tipos-de-intertextualidade/
Indagações sobre o tempo representado no
texto Carta a um desconhecido
Lembrando que na tragédia grega há unidade
de tempo, isto é, a narrativa se refere a apenas um dia, como a divisão em
itens se equaciona com o tempo narrado em Carta a um desconhecido? O que
essa divisão tem a ver com a insônia do emissor da carta?
Sendo uma carta datada de sexta-feira 17,
anterior a 04/02/2022 (data do lançamento da coletânea na qual foi publicado o
texto), @ leitor@ arrisca em qual mês e ano foi tal sexta-feira 17? Ou acha que
o número 17 faz alguma outra referência?
Você
considera esse texto cômico, trágico ou tragicômico?
A
tragicomédia foi amplamente difundida no teatro clássico, e caracteriza-se pela
combinação de elementos dramáticos e cômicos.
O
lado cômico da tragicomédia expressa rejeição, mostrando algo com deboche,
recorre à paródia, na qual recria-se um personagem ou um fato de maneira
grotesca.
Na Grécia Antiga, a tragicomédia utilizava o coro para comentar as cenas e representar o público na participação da peça teatral.
Geralmente
há um herói que age em prol da justiça social e depois de muito sofrimento tem
um final é feliz.
Referência
Editorial
QueConceito. São Paulo. Disponível em:
https://queconceito.com.br/tragicomedia. Acesso em: [21/02/2022]
Nenhum comentário:
Postar um comentário