segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Oficina de Leitura Reflexiva da Carta a um Desconhecido, de autoria de Gilberto Motta.

29/03/2022: Carta a um desconhecido. Gilberto Motta.

 

Carta a um Desconhecido

 

I - Boa noite, Sr. Desconhecido,

São duas horas da matina. Estou com insônia, talvez medo. A sexta-feira 17, começou como se fosse sexta-feira 13:

– O Brasil é ingovernável sem conchavos.

– Bomba! Bomba!

 

II- O dono da frase – em carta postada no WhatsApp e Witter – foi um certo "autor desconhecido" e o texto foi enviado, de acordo com a “imprensa sensacionalista e vendida”, pelo senhor pessoalmente.

– Sim! O senhor mesmo...a alguns grupos de seus fanáticos seguidores nas redes para que eles divulgassem, através dos robôs virtuais, ao resto do país.

 

III- Segundo o seu texto, Capitão...ops!...o texto do "autor desconhecido", o "País está disfuncional".

Estou tentando entender o que o senhor quis realmente dizer.

– Frase profunda, senhor.

Não cheguei ainda a nenhuma conclusão definitiva.

Talvez se o senhor falasse sobre forças ocultas ou renúncia, com os meus parcos conhecimentos de História do Brasil eu conseguiria fazer algumas conexões, uns links, quem sabe inferências.

Mas também, a esta hora da madrugada, senhor, não sei mais se estou com insônia, com pavor ou se continuo bebendo até dormir.

 

IV- No contexto atual, pode-se afirmar que é um documento explosivo, pois tem o potencial de uma carta-bomba.

Tá...carta-tsunami é mais suave, não...em ondas.

Seria mais fiel ao difícil momento de enchentes e vazantes dos fatos e fotos e fakes que historicamente teimam em se repetir em seu desgoverno desastroso e que já carrega quase 300 mil cadáveres inocentes e desnecessários nesses dois anos de congestão pandêmica sob o teu mando.

Como? O senhor acha mais apropriado carta-S.O.S.?

– Não?…

– Tá: carta-desabafo.

– Prepara-se a carta-Golpe?

Tobey.

 

V- Hora de descansar, Sr. Desconhecido.

Sejamos práticos: deixemos arrumadinha umas trocas na pequena mala.

Vamos separar a escova de dentes, o casaco de emergência, o coturno e deixar a Grande Famiglia de sobreaviso.

– Não, não se preocupe...será apenas por precaução, tá?

E, por favor, também deixe acesas todas as luzes da grande casa.

 

VI - São seis horas da manhã. A insônia parece melhorar. A tragédia geral e o medo não. Bom dia, Sr. Desconhecido...

 

E a nave negacionista vai...

E com ela, 212 milhões de seres humanos e o país.

 

 

 – O gênero carta. Edna Domenica Merola

“À revelia de que, na criação de uma carta literária, inventa-se o emissor, o destinatário e a mensagem, uma carta inventada é igual a uma carta real e isso dá um toque especial a tal gênero literário.

Do ângulo do emissor, a carta reporta-se ao tempo presente. O discurso epistolar antecipa uma resposta a vários destinatários lembrando um texto de teatro em formato de monólogo: ouvimos um lado e inventamos sua continuidade em resposta.

A escrita é representação da realidade pelo viés da voz do narrador. O trabalho de escrita pode ser visto como um artesanato da palavra a serviço da contemporização de memórias e opiniões. Com a prática da introspecção, o emissor poderá organizar os condutores de sua criação que nunca é a realidade em si, e sim a representação de algo que pode ter sido vivido como real no passado, mas que é resgatado sob o viés do tempo ‒ cronológico e existencial ‒ da escrita[e1] .” (MEROLA, 2021, p 81)

 

Referência

MEROLA, Edna Domenica. A uma colega. Coletânea Cartas não escritas. Apparere, 2021, p 81.

 

No texto, o emissor da carta “resposta” conta sua noite de insônia enquanto repete (com contrariedade)  o que o “Senhor” teria dito na carta “inicial” (anônima e pública). Pode-se dizer que há presença de um narratário no texto Carta a um desconhecido?

As histórias são feitas por criadores de protagonistas, de testemunhas, de observadores, de narradores e de narratários. Histórias são escritas por quem as ouviu ou viveu, por quem imaginou que ouviu ou imaginou que viveu. Ou por quem brincou de fazer de conta que delas participou de alguma das formas mencionadas. Histórias são feitas por criadores que dialogam com a realidade e a ficção. (MEROLA, 2014, p 92).

Ao perguntarmos quem é o ser que narra uma história escrita, a resposta óbvia é dizer que é um eu que o faz. No entanto, identificar as representações envolvidas num determinado contexto narrativo demanda um esforço de análise.

[...]

Se a temática é contemporânea e se o narrador é onisciente, isso fará o leitor supor que o texto é autobiográfico. O viés recorrente é a leitura de mundo que os autores expressam na construção da ficção sob a própria percepção do momento social. Ora, o que é vivido coletivamente no cotidiano é chamado de realidade. No entanto, a narrativa representa a realidade, não sendo idêntica a ela.

É contemporâneo pressupor que o lugar narrativo (de onde e de quem parte a história narrada) é mais apelativo do que o conteúdo anedótico daquilo que é exposto, descrito, narrado. [...]

É um desafio para os escritores distinguir os papéis de autor e narrador. Essa conscientização pode auxiliar a construir o texto de forma a afirmar que a diferenciação é válida ou que, ao contrário, se trata de uma narrativa autobiográfica. O autor poderá também criar um narrador com condições para construir uma narrativa que instale essa dúvida no leitor, fazendo disso material estético.

Na literatura brasileira do século XIX, a apóstrofe caro leitor, marca do contista brasileiro Machado de Assis, configura a existência de um narratário ou substituto do leitor no próprio texto.

Esse complementar do narrador – típico dos romancistas vitorianos – é um “artifício retórico, uma forma de controlar e complicar as respostas do leitor real, que permanece fora do texto.” (LODGE. 2011. P. 90).

 

 

LODGE, David. A arte da ficção. Trad Bras Guilherme da Silva Braga. L&PM Pocket, 2011.

 

MEROLA, Edna Domenica. O leitor na pele do narrador. Disponível em  https://netiamigo.blogspot.com/2019/07/o-leitor-na-pele-do-personagem-narrador.html

MEROLA, Edna Domenica. De que são feitas as histórias. Postmix, 2014.

 

Como se dá a intertextualidade em Carta a um desconhecido?

“Alguns teóricos acreditam que a intertextualidade é a própria condição da literatura – que todos os textos são tecidos com os fios de outros textos, independente de seus autores estarem ou não cientes.” (LODGE, 2011, p. 106).          

O texto é estruturado como resposta a uma carta anônima. O emissor da resposta se apropria do discurso contido na carta que não foi mostrada ao leitor, para criticá-la e se opor a ela com ironia.

Em retórica, “ironia” consiste em dizer o oposto do que se pretende comunicar ou em possibilitar uma interpretação diferente do significado superficial das palavras. Ao contrário de outras figuras de linguagem [...], a ironia não difere de uma simples frase denotativa em nenhum aspecto verbal. A ironia é reconhecida apenas no momento da interpretação. (LODGE, 2011, p. 186).  

 

 

Referência

LODGE, David. A arte da ficção. Trad Bras Guilherme da Silva Braga. L&PM Pocket, 2011.

 

SILVA, Débora. Estudo prático. Disponível em https://www.estudopratico.com.br/tipos-de-intertextualidade/

 

 

Indagações sobre o tempo representado no texto Carta a um desconhecido

Lembrando que na tragédia grega há unidade de tempo, isto é, a narrativa se refere a apenas um dia, como a divisão em itens se equaciona com o tempo narrado em Carta a um desconhecido? O que essa divisão tem a ver com a insônia do emissor da carta?

Sendo uma carta datada de sexta-feira 17, anterior a 04/02/2022 (data do lançamento da coletânea na qual foi publicado o texto), @ leitor@ arrisca em qual mês e ano foi tal sexta-feira 17? Ou acha que o número 17 faz alguma outra referência?

 

 

Você considera esse texto cômico, trágico ou tragicômico?

 

A tragicomédia foi amplamente difundida no teatro clássico, e caracteriza-se pela combinação de elementos dramáticos e cômicos.

O lado cômico da tragicomédia expressa rejeição, mostrando algo com deboche, recorre à paródia, na qual recria-se um personagem ou um fato de maneira grotesca.

 Na Grécia Antiga, a tragicomédia utilizava o coro para comentar as cenas e representar o público na participação da peça teatral.

Geralmente há um herói que age em prol da justiça social e depois de muito sofrimento tem um final é feliz.

 

Referência

Editorial QueConceito. São Paulo. Disponível em:

 https://queconceito.com.br/tragicomedia. Acesso em: [21/02/2022]


 [e1]

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Sobre o escritor Gilberto Motta. Por Edna Domenica Merola

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