Edna é organizadora e mantenedora de blogs temáticos:
1- Autoria feminina https://palavradejulinhadaadelaidesoledad.blogspot.com/
2- Ações culturais durante a pandemia https://pandoficina.blogspot.com/
3- Literatura https://aquecendoaescrita.blogspot.com/
4- Autorias próprias e de amigos https://netiamigo.blogspot.com/
6- Sobre idosos https://redeidosos.blogspot.com/
7- Oficinas para idosos https://netiativo.blogspot.com/
É autora nos gêneros:
Poemas: Cora, Coração
2011 |
Contos e crônicas
2019 |
2011 |
2012 |
Metodologia de oficinas de escrita criativa
2016 |
2017 |
Coletânea Cotidiano Introspectivo - Centenário Clarice Lispector . Apparere, 2020, pp 52-57.
Trecho do texto Caminhar e ...
O rabisco faz saber que um pedaço de mim tinha virado papel, sucata, algo que podia ser diluído n´água. Lembrei-me das pílulas de papel que as freiras da Igreja paulistana de frei Galvão disponibilizam para as devotas que querem engravidar ou para aqueles que necessitam de outros milagres. Graças a essa devoção (pelo que me parece) tal frei foi canonizado.
Visualizei-me comendo este pequeno papel encontrado em minha mesa como G.H. teria comido ou não a tal barata (LISPECTOR, 1964) ...
[...]
Escrever é praticar magia...
Referências
LISPECTOR, Clarice. A Paixão de G.H. 1964.
MEROLA, Edna Domenica. A volta do contador de histórias. Nova Letra. 2011, pp 109-116
______________________. De que são feitas as histórias. Postmix, 2014, pp 15-18.
Trecho de Peripécias de Pandemia. Coletânea Todo mundo em casa?! Reflexões de um pet. Apparere, 2020, pp 51-53.
Meu nome é Canis Narrator. Se fosse modesto, diria simplesmente que sou alguém que gosta de contar histórias, além de dar e receber fidelidade à humana que me chama de filhote até hoje, apesar de que já estou na terceira idade canina.
Mas como pertenço à Academia dos Há Cães Dêmicos, vou logo dizendo que sou produtor de roteiro para canais de televisão especiais para entretenimento canino. Então é claro que vou contar a história que foi premiada como melhor episódio do Canal Xis Cão, no programa Levante as orelhas que lá vem história!
A história se passa em Florianópolis, em 27 de abril de 2020, durante o isolamento social para evitar a proliferação do Covid 19. Não sei se já deduziram, mas a minha mamãe humana já não é tão nova como antigamente foi... (dá uma dor esdrúxula ao dizer isso, porque não há eufemismo que o sustente sem parecer ridículo).
Mas abana o rabo que lá vem história, caro leitor! Já que agora começa o propriamente dito, vivido, presenciado, que foi quando Mamãe resolveu me tirar do meu sossego contemplativo e assistir TV naquela altura que não há cão que aguente!
Aleatoriamente, ela ligou num canal no qual passava um programa de culinária e teve novamente aquela necessidade premente de ir ao supermercado.
– O que iria fazer?
Vestiu-se para sair e...
Não podia. Então se amarrou na poltrona.
Verificou que tinha ficado bem amarrada. Não poderia fugir...
O telefone tocou, não daria tempo de se desamarrar para atender.
[...]
– Que dia de cão! – pensou Mamãe.
– Nem brincar de São Bernardo teve graça! Que dia de humanos em pandemia! – pensei eu.
REFERÊNCIAS
BLANC, Aldir e BOSCO, João. O bêbado e a equilibrista.
MEROLA, Edna Domenica. Peripécias de Pandemia. Coletânea Todo Mundo em casa?! Reflexões de um pet. Apparere, 2020, pp 51-53.
____________________. Sobre O Bêbado e a equiibrista.
https://aquecendoaescrita.blogspot.com/2015/05/o-bebado-e-equilibrista-edna-domenica_16.html
Apenas um aceno! Coletânea O mundo parou! Apparere
Edna Domenica Merola
Primeiro foi a fase da negação. Repetia o slogan: um dia por vez. Não ouvia notícias sobre números de casos e mortalidade, apoiava todas as medidas de quarentena, mas não podia aderir a ela. Entenda que neguei que aquilo poderia me atingir, pois fazia um bom tempo que não me expunha a aglomerações para lazer. Os contatos sociais que exercia como provedora dos cuidados com a família não poderiam me prejudicar... (Você já fez esse tipo de contrato com Deus? Pois é, eu tive!).
Toquei
o barco com disposição de Ulisses. Daí veio a primeira vizinha me oferecer
ajuda, disse-me que, por ser idosa, deveria permanecer em casa.
–
Queriam-me Penélope, à revelia de Ulisses!
Você
que se achava porta-estandarte, sacou a sensação de pertencer à ala das
baianas?
E
veio mais outro vizinho (agora pelo watsapp), e mais outros... Você que
recentemente se conformara com sua nova posição na Escola de Samba
começou a sacar a sensação de ser uma recém nascida prematura?
De
repente numa incubadora! (Ainda que fosse um apartamento ensolarado e
ventilado, com direito a avistar o verde.).
Uma
sensação de impotência me invadiu. De súbito, pequenas coisas do cotidiano
tornaram-se enormes dragões.
–
Depressão?
–
Não, falta de sol!
Fui
na varanda pra tentar contemporizar essa vida de Penélope. Acenei para o único
ser vivente que vi do lado de fora.
Perguntou-me
se queria ajuda.
–
Sim – respondi. – apenas um aceno solidário.
Passamos
a frequentar nossas varandas nos dias subsequentes, com o sol da manhã.
No
primeiro dia, só acenou. No segundo, escreveu uma mensagem num cartaz. E assim
procedeu nos outros dias para exibir as mensagens de apoio à permanência na quarentena.
Certo dia, usou um megafone para mandar sua alegre mensagem. Noutro dia,
dedicou uma música para a senhora da varanda.
Até
que ele desapareceu por alguns dias. Será que voltara a passar o dia em seu
local de trabalho? Ou adoecera?
Então
numa manhã apareceu sem megafone. Fez sinal de silêncio, voltou pra dentro e
retornou com um cesto de bebê. Escreveu no cartaz a melhor mensagem de
otimismo:
–
É menina, o nome dela é Vitória.
REFERÊNCIA
MEROLA, Edna Domenica. Apenas um aceno. Coletânea de Contos O Mundo parou! Relatos do período de pandemia.Apparere, 2020, pp . 92-93.
O Jardim do Homem Sábio Edna Domenica Merola
Era
uma vez uma cidadezinha onde todas as casas tinham jardins.
Havia
o jardim do Seu Cravonildo, onde tudo era muito arrumadinho, o jardim da
Dona Angélica, onde tudo era muito limpo, o da Dona Margarida que era uma
senhora muito espaventada, o da Dona Hortênsia que tinha doze filhos, o da Dona
Rosalva que era professora, o da Florípedes que era médica, o do Seu
João Urtiga que era grande causador de intrigas. E tantos outros jardins.
Mas
havia dois jardins muito diferentes um do outro!
O
primeiro, o do Seu Floriano, era na verdade uma fábrica de flores. Se
uma roseira não tivesse pelo menos doze rosas, ele a expulsava de seu jardim. Seu
Floriano participava de campeonatos internacionais e ganhava muitos troféus.
O
outro era do Seu Jasmim, um velhinho chinês, meu vizinho. Observei esse
jardim durante muitos anos sem nada notar de especial.
Porém,
certo dia, surpreendi Seu Jasmim esconder uma lágrima, quando olhava a
flor mais feia, mais frágil, num cantinho, isolada. E num esforço maior pude
notar que aquela flor brotara por entre as pedras – as pedras que Seu Jasmim não expulsara de seu jardim.
REFERÊNCIAS
MEROLA, Edna Domenica. O jardim do homem sábio. In: Coletânea Contos infantis. Centenário de Maria Clara Machado. Apparere, 2021, pp .
O Espelho Edna Domenica Merola
Lia absorta, no banco mais próximo ao estacionamento do Centro de Comunicação e Expressão. Era noite. O campus é sabida e parcamente iluminado... Mas repleto de ruídos da natureza...
Sem a
nitidez necessária que a luz do sol poderia imprimir ao reconhecimento das
formas, passei a duvidar de alguns sons. Seriam mesmo da natureza?
Uma
sensação foi se delineando: a de que a certa distância, bem no prédio à minha
frente, algo estava se preparando...
Como
esperava o carro que viria me buscar, interpretei tal percepção como efeito do
esforço em manter o foco de atenção na entrada do estacionamento sem desviar do
texto que me levava para outro tempo, no qual “o mundo dos espelhos e o mundo
dos homens não eram, como hoje, incomunicáveis.”
Naquele
tempo, o mundo dos espelhos e o mundo dos homens “eram muito diferentes um do
outro; não coincidiam nem os seres nem as cores nem as formas. Os dois reinos,
o espetacular e o humano, viviam em paz; entrava-se e saía-se pelos espelhos.”
Mas
isso não foi assim sempre, pois “uma noite o povo do espelho invadiu a Terra.”
Nesse
ponto da leitura, senti uma presença que me espreitava... Toquei a bolsa que eu
posicionara sob O livro dos Seres Imaginários aberto.
Na
bolsa havia um pequeno espelho... Custava verificar?
Talvez
custasse decair algum grau na escala de sanidade mental comparativa. Ou subir
muitos graus na lista da fama de medrosa. Que tal ao invés de
usar o espelho fazer um selfie?
Senti que
uma massa de ar se locomovia em minha direção.
Decidi-me
finalmente pelo espelho e peguei-o em minha bolsa como se cometesse um ato
proibido.
Uma vez
raptado o objeto, posicionei-o como um retrovisor... Refletiu algo que não
parecia ser... Não podia ser... Cabia conferir se era...
Levantei-me
e foram para os ares: a bolsa e o Borges; o foco na leitura e o pudor de
encobrir o medo. Em mãos apenas o espelho...
E um
grito de horror que saiu de dentro dele.
Atraídas
pelo grito, várias pessoas apareceram... Logo em seguida tentaram
desaparecer... Fugir dali... Mas em seu encalço algo terrível que lembrava um
tigre... À revelia de suas guelras e escamas. Seus movimentos retumbavam como
sons de metralhadoras...
Das
janelas dos andares superiores alguns tentaram distrair o tigre-peixe
arremessando latas repletas de lixo...
Momentaneamente
o monstro titubeou farejando o contido... Mas logo continuou sua caçada,
perseguindo todos que se achavam ao redor e abatendo quem quer que achasse em
seu caminho.
De
repente, ouvi uma buzina: era a minha carona que chegara. No chão, sobre a
grama, o Borges, o espelho, a bolsa. Guardei-os dentro dela. Subi no carro.
E nada
mais ouvia, além dos sons normais e esperados.
As
batidas de meu coração quase estavam em seu ritmo habitual. Provavelmente nada
de especial acontecera (durante a espera do meu transportador) além de uma
interessante leitura...
Só não
consegui ser a primeira a puxar conversa, pois o motorista disse sem jeito:
–
Desculpe-me perguntar... De onde veio essa rajada de pelos que sujaram seu
casaco?
REFERÊNCIAS
MEROLA, Edna Domenica. O espelho. Coletânea Lendas urbanas. Apparere, 2021, pp .
Natal para 2020 Edna Domenica Merola
Se, em 2020, inventasse um Natal,
Criaria
um ser natural
Pai
Mãe Água Terra Fogo
Revigoraria o Ar todo...
Se inventasse um Natal,
Assinalaria
o astral
Com
sinfonia e poesia
Com melodia e harmonia...
Se imaginasse um Natal,
Eliminaria a dor,
a pandemia da morte,
a falta de fraterno amor
que traz má sorte
Palavra
e Natureza certeiras:
– Vacinas sem fronteiras
– Justiça social audaciosa.
Se eu inventasse,
para 2020,
um Natal...
REFERÊNCIAS
MEROLA, Edna Domenica. natal. Segunda Coletânea de Natal. Apparere, 2020, p. 58.
O que San Gennaro previu?
As marias de San Gennaro |
Pois é vai que o tempo passou e uma delas intuiu a vocação do amado santinho no campo das previsões.
O que São Genaro previu? Não se sabe ao certo... Hein? “Santo não é cartomante, minha gente!”
Mas sei parte do que viu.
Porém, vale antes narrar as consequências das peripécias existenciais de São Genaro em seus diálogos com as lideranças de vários segmentos sociais. E de como tudo isso foi deixando São Genaro estressado.
A interlocutora Mãe do Ano de 2011, mas que pediu santa inspiração sobre como educar os filhos, recebeu o e-mail de autoajuda enviado por São Genaro com tanta fé que resolveu sua vida... Foi fazer pilates e arrumou um emprego. Até aí quase tudo ia bem... Para São Genaro.
A interlocutora Pesquisadora Francesa que estudava o tema da violência nas relações do trabalho, encorajada pelo santo, começou a incorporar sintomas da síndrome do pânico, dedicando-se à pesquisa, mas tendo o cuidado de não sair de casa. Isso já dificultou a santa posição ocupada em campo por Genaro.
E por fim o Renomado Ambientalista que pedia auxílio pelas ocorrências de catástrofes... Fora a gota d´água no conjunto de fatores desencadeantes da crise existencial de São Genaro e responsável por sua Síndrome de Inquietações de Tempos Pós Modernos...
São Genaro voltou a pensar em como era bom quando podia ficar no altar, incentivando os consulentes à contemplação.
O sentimento de impotência e o saudosismo foram os motes de meditação do santo, naqueles dias.
O Amado Santinho considerou que estava meio deprimido. Ponderou que passariam a apelidá-lo, displicentemente, de deprê, à revelia de ter tido a coragem de revelar o seu sintoma ao público amigo.
Na tentativa de contornar a situação, São Genaro inscreveu-se em um curso que Santo Antonio ministrava sobre bilocação.
Lembrou-se do que é bilocação? Ah... É estar em dois lugares ao mesmo tempo... Ah! Você achou que é bom fazer o curso para se preparar para jogar na bolsa de valores? Hein?
Não... Não... A bilocação que São Genaro queria utilizar era para poder estar nos locais referidos pelo solicitante de ajuda e no altar ao mesmo tempo para incentivar a contemplação. E deveria ter comportamento ético nos dois locais...
Tentemos deixar as digressões filosóficas de lado e retomemos a época em que São Genaro ainda interagia assertivamente com algumas professoras bem ativas.
Não se lembra? [...]
– O que São Genaro previu? O que isso diz respeito às educadoras antigas devotas do santo?
Lá e então, contei aquela história na qual São Genaro interage com algumas professoras ativas (hoje aposentadas: passivas... ou ativas... ou hiperativas por contágio laboral). Pois ainda somos íntimas e uma delas me contou sua última consulta ao venerável santo.
Claro que interrompi o relato quase antes que iniciasse. Pois necessitei perguntar-lhe qual foi o motivo da consulta. Expliquei daquela forma: com três perguntas, lembra? Isso... Você não se aguenta? Ou você não aguenta os outros? Ou os outros não a aguentam?
A consulente: Júlia, 60 anos (esse é o primeiro campo a ser preenchido na anamnese, lembrou?)... Júlia respondeu-me que, no momento referido, precisara de assessoria na carreira de aposentada. O que quase queria dizer que acreditava se encaixar nas três hipóteses. Não se aguentava e nem aos outros e ainda de sobra os outros não a aguentavam. Tentou trabalhar em ONG, em OSCIP, por conta própria, em grupo de ASPONE, como vigilante da natureza... Mas ainda queria ser útil e participar efetivamente da vida cidadã.
Graças às lições recebidas no curso de bilocação, São Genaro pôde conferir item por item do currículo de Júlia, após a aposentadoria no emprego formal. O santo aferiu que Júlia começava sempre sorrindo e terminava tristemente. No decorrer do trabalho percebia que a prática não respondia ao ideal preconizado.
Por falta de horário extra em seu psicanalista, nesse ponto, São Genaro teve de consultar Nossa Senhora da Ajuda, recorrendo à bilocação. São Genaro, infelizmente, identificara-se com o problema trazido por Júlia. Nossa Senhora aconselhou-o a ser autêntico e abrir o jogo com a consulente. Foi o que fez Genaro.
Júlia avaliou a humanidade do santo. Até parecia ser brasileiro. Pensou... Tomou coragem e pediu-lhe dar um jeitinho... Que olhasse seu futuro.
São Genaro ainda imbuído de muita autenticidade saiu com essa:
‒ Santo não é cartomante, Júlia! E não me pergunte se pode consultar uma adivinha porque a resposta está na Bíblia (é não!). Mas atendo sempre uma cartomante que vem rezar aqui para que seus consulentes sejam perdoados e, consequentemente, seu trabalho garantido... Não espalha! ‒ segredou o venerável santo.
E lá se foi Júlia... No caminho rezava, pedindo pelo correto agir de sua mão... Posta sobre o celular, ainda dentro da bolsa... Que Deus não permitisse que ela o retirasse e telefonasse para as inúmeras amigas, dando ciência das novidades insólitas sobre São Genaro.
Ao chegar a casa, continuou rezando, mas dessa vez por intercessão da própria boca... Que ela não se abrisse para revelar a ninguém o encaminhamento feito por São Genaro, naquela tarde.
De repente, Júlia percebeu-se ansiosa: o segredo de São Genaro a sufocava. [...]Tentou ler, mas distraia-se, constantemente. Resolveu ir até a cozinha e no caminho lembrou-se da crônica Pudim a Dostoievski, produzida pela colega Estela Maria, numa oficina literária.
A história refere a uma personagem que está ansiosa e que apelida o pudim que está na geladeira de “crime e castigo”, pois reconhece o risco de descontar seu estado emocional na degustação... Júlia lembra-se de que, após resistir a abrir a geladeira por pura compulsão, a personagem consegue entrar em contato consigo mesma, e viver um momento de descoberta existencial.
Pensou rapidamente no inexplicável de tantas coisas. Na memória, dois contos que lera... A cartomante, de Machado de Assis e O Colar, de autoria de certa colega também devota de São Genaro. E ambos faziam-na lembrar da mesma frase do príncipe de Dinamarca que lhe reboava dentro: "Há mais coisas no céu e na terra do que sonha a filosofia..." Que perdia ela, se...?
Júlia entrou na cozinha e encontrou Catarina, sua ajudante.
Júlia notou que a observação de Hamlet feita a Horácio foi a mesma explicação que Catarina lhe deu, naquela sexta-feira de novembro de 2012, quando riu dela, ao saber que à véspera consultara uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras.
‒ Ria quanto quiser. As patroas são assim; não apostam nas iniciativas que tomamos sem consultá-las.
Pois saiba que fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: "Você trabalha em casa de família e gosta de fazer compras a crédito, ajudada por sua patroa..." Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinou-as, e no fim declarou-me que eu tinha medo de que seu marido brigasse por isso, na hora em que soubesse da nova compra que fiz...
Segundo Catarina, era hora de ir embora, arrumou-se rapidamente e apareceu para se despedir. Dona Júlia aconselhou-a mais uma vez. Quando tivesse algum problema do tipo, os melhores cartomantes eram os patrões. Depois, repreendeu-a; disse-lhe que era imprudente andar por essas casas. O patrão poderia ficar sabendo, e depois...
‒ Como ele iria saber? Tive muita cautela, ao entrar na casa.
‒ Onde é a casa?
‒ Aqui perto, na rua à direita do seu prédio. Fui a pé e não passava ninguém nessa ocasião. Fique sossegada; eu não sou maluca.
Júlia riu outra vez:
‒ Você crê de verdade nessas pessoas? ‒ perguntou-lhe.
Foi então que ela, traduzindo Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muita coisa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ela não acreditava, paciência; mas o certo é que a cartomante ensinara uma reza tiro e queda. Que mais? A prova é que ela agora estava tranquila e satisfeita.
Júlia ia retrucar, mas reprimiu-se. Não queria arrancar-lhe as ilusões. Catarina despediu-se e saiu alegremente. Em seguida, Júlia resolveu sair novamente... Mas não voltou à Igreja.
Foi passear de carro, dirigindo. Logo no caminho, um veículo quebrado. O tempo voava, e ela ansiava por estacionar o carro para fazer um passeio no calçadão, desfrutando da brisa marítima. Não havia saído para pegar fila! Pensou em fazer um caminho alternativo... Com o carro em baixíssima velocidade reparou que ao lado, à esquerda, ficava a casa da cartomante que Catarina consultara. Seria a mesma que São Genaro mencionara?
Desejou ter dons mágicos para prever o que teria acontecido com as consulentes devotas que a consultaram. Olhou a casa da cartomante, viu as janelas fechadas, quando todas as outras estavam abertas. Seria esquisitice de adivinha ou ela não estava em casa?
Fez um gesto incrédulo: era a ideia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, desapareceu, reapareceu, e tornou a sair da cabeça; mas daí a pouco reapareceu como ideia renitente...
Deu por si na calçada, e rápido enfiou pelo corredor, e subiu a escada. Os degraus carcomidos, o corrimão pegajoso; mas ela nem reparou. Subiu e bateu. Não aparecendo ninguém, teve ideia de descer; mas era tarde, a curiosidade tornava-se cada vez mais aguçada; ela tornou a bater uma, duas, três vezes. Veio uma mulher; era a cartomante.
Júlia disse que queria consultá-la, ela pediu para entrar. Subiram por outra escada ainda pior que a primeira. Em cima, havia uma salinha, mal iluminada por uma janela, que dava para o telhado dos fundos. Velhos móveis, paredes úmidas, um ar de desleixo, que antes aumentava do que destruía o prestígio.
A cartomante pediu-lhe que sentasse diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no rosto de Júlia. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e velhas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ela, não de rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de cinquenta anos, morena e magra, com grandes olhos. Colocou três cartas sobre a mesa, e disse-lhe:
‒ Vejamos primeiro o que é que a traz aqui. Você é uma pessoa educada e realizada... Mas tem uma enorme vontade de saber sobre o futuro.
‒ Eu poderia ter morrido pela rubéola materna antes mesmo de nascer. Eu poderia ter morrido de icterícia entre a primeira hora e a septuagésima segunda hora após meu nascimento. ‒ disse Júlia.
‒ Mas não morreu, pois seus pais tinham acesso a bons serviços médicos. ‒ disse a cartomante.
Eu poderia ter morrido de desnutrição durante o primeiro ano de vida. ‒ disse Júlia.
‒ Mas não morreu, pois seus pais tiveram condições de dar-lhe boa alimentação.
Eu poderia ter morrido de doença infectocontagiosa ao entrar na escola. ‒ disse Júlia.
‒ Mas não morreu, pois teve sorte, apesar de algumas vacinas ainda não existirem, à época.
Eu poderia ter morrido por tortura durante a ditadura se o número de meu telefone estivesse na agenda de algum jovem colega da USP que foi pego no início dos anos setenta. Eu poderia ter morrido, em Suzano, no acidente do trem dos estudantes que se dirigia a Mogi das Cruzes, em 08 de junho de 1972, caso não tivesse entrado na USP. ‒ disse Júlia.
‒ Mas não morreu, pois era estudiosa e teve sorte com as blitz...
Eu poderia ter morrido em consequência da violência das escolas em que lecionei, ou em alguma enxurrada, durante a gravidez. Eu poderia ter morrido de eclampse ou outra complicação no parto do primeiro filho. ‒ disse Júlia.
‒ Mas não morreu, pois teve boa sorte e bom plano de saúde... É como diz o ditado português: “Mocidade trabalhosa, velhice desditosa”.
Eu poderia ter morrido em decorrência de um câncer de mama, antes dos sessenta anos... Mas como escreveu Luís Nicolau Fagundes Varela: “Deus me guardava para esse lugar e hora”... ‒ disse Júlia.
‒ Para saber se acontecerá alguma coisa negativa ou não... Nos próximos anos de vida. ‒ continuou a cartomante.
Júlia, maravilhada, fez um gesto afirmativo.
A cartomante não sorriu: disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez das cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas roídas; baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas, três vezes; depois começou a estendê-las. Júlia, curiosa e ansiosa, tinha os olhos na cartomante.
‒ As cartas dizem que... Veja a primeira carta... Uma bela sorte com saúde... Desculpe-me, quantos anos tem? Já sessenta? Não parece? É como diz o ditado: “Somente Deus pode causar a morte”... por velhice.
Júlia inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela profetizou que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria a ela, mas que, nas décadas futuras, quase todas suas amigas ficariam viúvas.
– Causas mortis dos maridos? Doenças cardiovasculares. – disse a cartomante, recolhendo as cartas. Fechou-as na gaveta.
‒ A senhora restituiu-me a confiança, disse Júlia.
A cartomante se levantou, rindo.
‒ Quanto é a consulta?
‒ Pergunte ao seu coração, respondeu ela.
Júlia tirou uma nota de cem. Os olhos da cartomante brilharam. O preço usual era cinquenta.
‒ Vejo bem que a senhora é boa pessoa.
A cartomante parecia agora algo mais verdadeiro. Chegou a arrepender-se de julgar que aquilo era pecado e a envergonhar-se de suas descrenças. Em verdade, a cartomante adivinhara o objeto da consulta, e a ajudara a sentir uma fé nova e vivaz.
A verdade é que continuava apreensiva, mas tinha a certeza de poder contar novamente com a própria fé. Ao passar pela Avenida Beira Mar, Júlia deliciou-se com o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação de tranquilidade, longa, longa, interminável. Parou no estacionamento ao lado dos quiosques e, sem descer do carro, telefonou para Cleuza.
Daí a pouco chegou à casa da amiga. Estranhou que ela não a esperasse à porta. Empurrou a porta de ferro do jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra e mal teve tempo de bater; a porta abriu-se, e o marido da amiga apareceu.
‒ Desculpe-me, já fui entrando; o que houve?
O marido de Cleuza não lhe respondeu; fez-lhe sinal, e foram para uma saleta interior na qual Cleuza costumava descansar. Entrando, Júlia Maria não pôde sufocar um riso de espanto: sobre o sofá instalado ao fundo do compartimento, estava Cleuza Maria... E nas proximidades: Rosângela Maria, Ieda Maria, Wilma Maria, Edna Maria, Estela Maria e as demais... Esperando-a.
‒ O que você achou da dona Maria Assis, a cartomante? ‒ perguntaram em coro.
REFERÊNCIA
ASSIS, Machado de. Várias Histórias. MEC, 1986. Livro digital, pdf, Domínio Público.
MEROLA, Edna Domenica. O Colar. A volta do contador de Histórias. Nova Letra: 2011, pp 61 - 76.
MEROLA, Edna Domenica. As Marias de San Gennaro. Ed Insular, 2019, pp 31- 39.
Quem disse que São Genaro blefou?
Recorda-se, o caro leitor, de São Genaro e de suas utópicas devotas, as educadoras desejosas de melhorar a sociedade por intermédio da previsão futurológica?
E lembra-se de que a interação entre São Genaro e as utópicas devotas começa quando eram professoras ativas (que hoje são aposentadas: passivas... ou ativas... ou hiperativas por contágio laboral) que ainda são íntimas entre si e também do Santo? E lembra-se ainda, em especial, de uma delas – a Júlia – que contou a uma escritora florianopolitana sobre duas consultas feitas, consecutivamente, por ela: uma ao venerável santo e a outra a uma cartomante?
Se São Genaro realmente blefou, não se sabe ao certo... “Santo não é jogador de pôquer, minha gente!” Mas sabe-se que andou articulando... Mas foi tudo em nome da fé... de obter uma licença para cuidar de uma crise de ansiedade provocada após determinados fatos...
Pois é. Foi que houve uma previsão Maia de que o mundo iria acabar. Foi que, à revelia disso, um novo ano começou. Foi que houve um divertido Carnaval... Foi que São Genaro teve nova crise, em plena quarta-feira de cinzas... Foi que meteoritos caíram. Foi que o Papa se mudou do Vaticano. E foi que as mães católicas tiveram de explicar para as criancinhas não chorarem a perda, porque iriam ter dois Papas, sendo um exclusivo para rezar para acabar com a pedofilia...
E foi que dessa vez a crise de São Genaro não foi de depressão e sim de ansiedade... Em plena quarta-feira de cinzas: início de um período reservado a aprender ou ensinar a “abaixar a bola”.
Como todos os Papas concordaram (desde o século IV, até então) a quarta-feira de cinzas inicia a quaresma. A duração da Quaresma é citada na Bíblia por diversas vezes... Quarenta dias do dilúvio... Quarenta anos de peregrinação do povo judeu pelo deserto... Quarenta dias de Moisés e de Elias na montanha... Quarenta dias que Jesus passou no deserto antes de começar sua vida pública. Um tempo de jejum e de abstinência considerado suficiente para o devoto aprender como adotar um espírito penitencial e de conversão. Tempo de arrependimento de pecados e de aprimoramento existencial e de aproximação maior com Cristo, pelo perdão e pela reconciliação fraterna.
Como sempre, seu psicanalista continuava com a agenda lotada e São Genaro teve de ser atendido por uma colega de plantão: Nossa Senhora do Perpétuo Socorro.
‒ Senhora do Perpétuo Socorro... E porque tudo o que é perpétuo exige muita paciência, invoco-a como Senhora da Sabedoria Temporal, socorra-me aqui e agora, já! ‒ exclamou São Genaro.
‒ Como posso ajudá-lo, venerável colega?‒ perguntou Nossa Senhora do Perpétuo Socorro.
‒ Com todo o respeito... Daria para fazer os noves fora no número de dias de jejum? Essa ansiedade acabou me dando hipoglicemia... ‒ queixou-se São Genaro.
‒ Caro Genaro, nada de noves fora! Vamos suspender seu jejum de alimentos, substituindo por algo de que goste muito, durante toda a Quaresma. ‒ ponderou Socorro.
‒ Gosto de ficar no meu altar, ouvir as preces e mediar os pedidos das professoras aposentadas, principalmente as de nome Maria... ‒ disse Genaro, talvez movido apenas pela necessidade de obter um período de licença para restabelecer a saúde.
‒ Concedido! ‒ disse a santa.
‒ Até a Páscoa ‒ arriscou São Genaro.
O celular de Santa Maria do Perpétuo Socorro tocou e no visor apareceu escrito Maria.
‒ Até sexta-feira que vem ‒ disse Maria do Perpétuo Socorro ‒ enquanto pegava o celular para prestar outro socorro a uma das inúmeras devotas que, como ela, se chamam Maria.
REFERÊNCIAS
MEROLA, Edna Domenica. As Marias de San Gennaro. Insular, 2019, pp 42-43.
LEITURAS COMPLEMENTARES
https://aquecendoaescrita.blogspot.com/2014/05/festivais-de-mpb-interlocutores-e-acoes.html
Diálogos da maturidade - 2016
https://netiativo.blogspot.com/2016/06/releituras-edna-domenica-merola.html
https://netiativo.blogspot.com/2016/04/dialogos-da-maturidade-edna-domenica.html
http://aquecendoaescrita.blogspot.com.br/2016/01/prefacio-do-livro-volta-do-contador-de.html
http://aquecendoaescrita.blogspot.com.br/2012/05/volta-do-contador-de-historias.html
http://aquecendoaescrita.blogspot.com.br/2012/07/encontro-de-cora-coracao-com-voce-na.html
http://aquecendoaescrita.blogspot.com.br/2012/05/cora-coracao.html
http://aquecendoaescrita.blogspot.com.br/2012/11/no-ano-do-dragao-no-dia-0612-um-convite.html
http://aquecendoaescrita.blogspot.com.br/2012/10/uma-surpresa-no-ano-do-dragao.html
http://aquecendoaescrita.blogspot.com.br/2014/06/ritual-de-leitura-de-maos-dadas-com-um.html
http://aquecendoaescrita.blogspot.com.br/2015/02/sexta-feira-treze-edna-domenica-merola.html
http://aquecendoaescrita.blogspot.com.br/2013/10/lancamento-da-obra-professora-x-maria-e.html
http://aquecendoaescrita.blogspot.com.br/2014/09/conhece-meu-novo-livro-de-que-sao.html
http://aquecendoaescrita.blogspot.com.br/2016/12/oficinas-pesquisaacao-dialogos-da.html
http://aquecendoaescrita.blogspot.com.br/2012/10/convite-30102012-espaco-cultural-rita.html
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