Ele bateu à porta por volta das 18 horas. Ela não abriu. Mesmo se tratando de um condomínio com portaria 24 horas, ela ponderou que pudesse ser um estranho.
A senhora perguntou quem era e o que ele queria.
Uma voz que não transmitia conforto respondeu que era o vizinho e que vinha
para perguntar se ela fazia uso de incenso e se arrastava cadeiras.
Foi então que ela abriu a porta, exibiu seus
cabelos brancos, sua bengala e (por que omitir?) certa vitalidade na
comunicação.
Disse-lhe que a bengala, com certeza, fazia
barulho, que dormia bem e que portanto os ruídos seriam ouvidos apenas durante
o dia, mas que continuariam ocorrendo já que não podia prometer que sua fada
madrinha iria fazê-la acordar, no dia seguinte, sem as limitações das quais
padecia.
Quanto ao incenso, respondeu ao moço que não usava
(nem acendia velas), que não praticava nenhum ritual no apartamento.
Acrescentou ter ouvido queixas de outros moradores
em relação a cheiro de maconha. Perguntou se as suspeitas dele sobre o uso de
incenso se dirigiam a "fumantes". Ele disse que sim.
Nessa altura, ela pôs a cara em direção ao corredor
e ergueu a voz ao dizer:
- Não uso maconha, à revelia de que poderia
fazê-lo, já que tal uso tem indicação para artrose, doença crônica da qual
sofro.
A idosa prosseguiu com seu discurso indignado. Mas,
quanto mais ela falava, mais o moço repetia suas acusações. Da soleira da porta
do apartamento dela, o estranho podia ver uma mesa com quatro cadeiras na sala.
Apontou a que ficava na posição tal que quem nela sentasse ficaria de costas
para a porta, indicando que o barulho partia de lá.
Ela respondeu que nunca sentava daquele lado.
Quando ele foi embora, ela aquilatou que falara
demais. Com seus blefes, o caçador aumentara os informes sobre sua caça.
Entre pensamentos esparsos da idosa, foram
aparecendo novas perspectivas sobre a cena do visitante indesejado. Cada vez
que ela passava perto das cadeiras ao redor da mesa, imaginava como seria
recobrar o vigor para batê-las com força no chão.
E o hábito de bater talheres na louça, por que
nunca tinha tido, durante toda a vida? Ainda poderia adquiri-lo...
E mesmo estando sozinha nas refeições, poderia
gritar:
- Passa o sal, por favor!
Ou melhor:
- Porra meu, passa esse sal logo!
Superada a fase de refletir sobre comportamentos,
novos sentimentos sobre o outro foram aflorando.
O primeiro foi o de indignação por ter sido tachada
injustamente de maconheira. O segundo foi o medo de que o estranho vizinho
traçasse planos de vingança pela falta de receptividade por ela sinalizada.
Indignação e medo redundaram na instalação da presença invisível e dominadora
do novo vizinho em sua sala, em seu apartamento, em sua vida. Em pouco tempo,
consolidou-se a sensação de sobreviver num território invadido. Passara a ser
sem pátria dentro de sua própria casa!
Teve necessidade de se voltar para fora: conviver
com o campo visual dado pela varanda. Tratava-se de um cenário verde a que
todos deveriam ter direito...
Começou a reparar: havia sim um cheiro de
queimado que vinha pela sacada do apartamento. Passou a procurar
insistentemente por quem se dispusesse a localizar quem queimava lixo no
bairro.
Desgastou-se.
Para tentar superar, passou a coletar frases de
auto ajuda. Muitas giravam em torno de “o inferno são os outros”. Muitas
deturpavam o sentido da tal frase colhida da boca de um personagem da peça
"Entre quatro paredes" escrita por Sartre no final da chamada segunda
guerra do século XX, na qual o inferno é uma sala sem espelhos onde os
condenados só podem se ver por meio dos olhos dos outros.
E foi naquele mundo de auto ajuda que ela viveu,
longe de seu vizinho, até o
FIM
Caro leitor, cara leitora, responda a quem narra
esta história: "tal política de vizinhança causará a extinção do planeta
Terra?"