sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Entre quatro paredes. Edna Domenica Merola

Ele bateu à porta por volta das 18 horas. Ela não abriu. Mesmo se tratando de um condomínio com portaria 24 horas, ela ponderou que pudesse ser um estranho.

 

A senhora perguntou quem era e o que ele queria. Uma voz que não transmitia conforto respondeu que era o vizinho e que vinha para perguntar se ela fazia uso de incenso e se arrastava cadeiras.

 

Foi então que ela abriu a porta, exibiu seus cabelos brancos, sua bengala e (por que omitir?) certa vitalidade na comunicação.

 

Disse-lhe que a bengala, com certeza, fazia barulho, que dormia bem e que portanto os ruídos seriam ouvidos apenas durante o dia, mas que continuariam ocorrendo já que não podia prometer que sua fada madrinha iria fazê-la acordar, no dia seguinte, sem as limitações das quais padecia.  

 

Quanto ao incenso, respondeu ao moço que não usava (nem acendia velas), que não praticava nenhum ritual no apartamento. 

 

Acrescentou ter ouvido queixas de outros moradores em relação a cheiro de maconha. Perguntou se as suspeitas dele sobre o uso de incenso se dirigiam a "fumantes". Ele disse que sim.

 

Nessa altura, ela pôs a cara em direção ao corredor e ergueu a voz ao dizer:

- Não uso maconha, à revelia de que poderia fazê-lo, já que tal uso tem indicação para artrose, doença crônica da qual sofro.

 

A idosa prosseguiu com seu discurso indignado. Mas, quanto mais ela falava, mais o moço repetia suas acusações. Da soleira da porta do apartamento dela, o estranho podia ver uma mesa com quatro cadeiras na sala. Apontou a que ficava na posição tal que quem nela sentasse ficaria de costas para a porta, indicando que o barulho partia de lá. 

Ela respondeu que nunca sentava daquele lado.

 

Quando ele foi embora, ela aquilatou que falara demais. Com seus blefes, o caçador aumentara os informes sobre sua caça.

Entre pensamentos esparsos da idosa, foram aparecendo novas perspectivas sobre a cena do visitante indesejado. Cada vez que ela passava perto das cadeiras ao redor da mesa, imaginava como seria recobrar o vigor para batê-las com força no chão.

 

E o hábito de bater talheres na louça, por que nunca tinha tido, durante toda a vida? Ainda poderia adquiri-lo...

 

E mesmo estando sozinha nas refeições, poderia gritar:

 

- Passa o sal, por favor!

 

Ou melhor:

 

- Porra meu, passa esse sal logo!

 

Superada a fase de refletir sobre comportamentos, novos sentimentos sobre o outro foram aflorando.

 

O primeiro foi o de indignação por ter sido tachada injustamente de maconheira. O segundo foi o medo de que o estranho vizinho traçasse planos de vingança pela falta de receptividade por ela sinalizada. Indignação e medo redundaram na instalação da presença invisível e dominadora do novo vizinho em sua sala, em seu apartamento, em sua vida. Em pouco tempo, consolidou-se a sensação de sobreviver num território invadido. Passara a ser sem pátria dentro de sua própria casa!

 

Teve necessidade de se voltar para fora: conviver com o campo visual dado pela varanda. Tratava-se de um cenário verde a que todos deveriam ter direito...

 

Começou a reparar: havia sim um cheiro de queimado que vinha pela sacada do apartamento. Passou a procurar insistentemente por quem se dispusesse a localizar quem queimava lixo no bairro.

 

Desgastou-se. 

 

Para tentar superar, passou a coletar frases de auto ajuda. Muitas giravam em torno de “o inferno são os outros”. Muitas deturpavam o sentido da tal frase colhida da boca de um personagem da peça "Entre quatro paredes" escrita por Sartre no final da chamada segunda guerra do século XX, na qual o inferno é uma sala sem espelhos onde os condenados só podem se ver por meio dos olhos dos outros. 

E foi naquele mundo de auto ajuda que ela viveu, longe de seu vizinho, até o 

FIM

 

Caro leitor, cara leitora, responda a quem narra esta história: "tal política de vizinhança causará a extinção do planeta Terra?"

 

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