Abertura com audição de Anjos Tronchos, Caetano Veloso
Ler é acolher o outro, acolher o imaginário
do outro, acolher, no imaginário do outro, o outro em que, graças à leitura,
também nos tornamos.
Leonardo Tonus
O lugar de leitura
O gesto da alteridade, que subjaz o ato da
leitura (e do ensino da literatura), requer um comprometimento que, em mão
dupla, deve nos conduzir ao reconhecimento tanto de uma fragilidade como de uma
superioridade: a nossa e a alheia. Muito se debate hoje acerca do “lugar de
fala”, espaço discursivo de poder que conduz ao silenciamento das diversidades.
Ora, [para Leonardo Tonus], tornou-se igualmente imprescindível interrogar o
“lugar de leitura”, lugar social a partir do qual lemos o mundo e o mundo dos
livros. Sem essa interrogação, não há como se pensar a literatura em seu
comprometimento para com o outro.
Leonardo Tonus
AQUÁRIOS ARTIFICIAIS
(Gilberto Motta – 2018)
“O que seria – fato concreto –, o certo? E o errado? Talvez até mesmo a desarmonia seja um “estado de estar”, de caminhar na contramão do real e da lógica da maioria”.
Enquanto limpo o salão/refeitório da Casa Central, fixo o olhar no aquário imaginário que criei – terapia paupérrima de sobrevivência – e admiro os peixinhos no balé aquático de suas existências glub, glub.
Mais
que admirar, contemplo aqueles seres exóticos.
Beleza
extraordinária.
Deixo-me
envolver pelo encanto e elegância de seus movimentos; a agilidade de uns, a
calma de outros, em cores vivas e variadas. Permaneço absorto por alguns
segundos.
Eternos
segundos.
Viajo
pelos bosques da imaginação.
A
harmonia das formas, os olhares hipnóticos sem pálpebras, a geometria dos
movimentos, a biodiversidade de espécies, de gêneros e comportamentos.
Habitantes de um espaço fechado, cada um a seu modo, executando a dança da
vida.
Por
mais que eu evite pensamentos transcendentais, esbarro na ideia dos sentidos de
mundo como um magnífico caleidoscópio de seres e coisas e na possível
existência de um “Ser organizador”.
Talvez
aquele que, em um dado espaço-tempo, dispôs a matéria e organizou aquilo a que
chamamos natureza; e nela, os seres vivos e os inanimados.
Em meu
aquário imaginário, como num filme mental, tudo parece fazer parte desta
vertigem de imagens em perfeito sincronismo.
O
acaso não teria chances de compor tão bela harmonia.
Na
verdade, a vida é mesmo uma exata sinfonia.
Aqui,
fora do aquário, a realidade é outra.
Algo
distante e repleto de dúvidas humanas, mitigadas à exaustão. A praga pandêmica
não dá trégua há anos e já não há covas o suficiente, nem cemitérios, nem
oxigênio, apenas desesperança.
Um
outro pensamento toma de assalto a minha cabeça: “...e se os peixes apenas
estiverem repetindo o ciclo, o movimento contínuo por não saberem – desconhecerem
– outra forma de agir e de viver?”
Penso,
então, em liberdade.
O
que seria – fato concreto –, o certo? E o errado?
Talvez
até mesmo a desarmonia seja um “estado de estar”, de caminhar na contramão do
real e da lógica da maioria.
Explico:
antes de apenas seguir o ciclo (como os peixes em meu aquário imaginário),
reflito sobre ter o direito e o poder de escolher pela desarmonia. Não seria
este o sentido do livre-arbítrio moderno? A essência da liberdade de que falam
as antigas escrituras?
Continuo
estático.
Olhos
fixos no aquário inventado.
Amplio
a divagação:
“Assim
como o animal irracional é seus impulsos, o homem/racional é a sua liberdade, o
seu poder de julgar e escolher”.
Talvez
a liberdade seja o maior dos bens.
Tudo
o mais que pensamos possuir poderá se perder no próximo segundo.
A
liberdade não. Permanecerá existindo em nossas conjecturas, em nossos
pensamentos. Só a perderá se quiser, como fruto de uma escolha.
Súbito,
um susto.
Ouço
um barulho no lado de fora do imenso refeitório.
É
a vaca Esperança, um ser acima do bem e do mal, que habita a nossa comunidade.
Olhos enormes – com pálpebras –, ruminando em atitude zen. Pergunto-me se um
dia alcançarei a paz e o equilíbrio da Esperança e se existirá mesmo uma
jornada decisiva e desenhada para cada ser.
Até
onde iremos com a ditadura do pensamento em busca do movimento transformador?
Percebo
que há diferenças fundamentais entre os peixinhos e nós humanos.
Os peixes seguem em harmonia por não terem opções. Eu – e a comunidade – pensamos que as possuímos e, portanto, refletimos, julgamos, escolhemos, decidimos.
Sem estas potências, definitivamente não seríamos humanos. Assim como os peixinhos, há meses estamos isolados e protegidos aqui neste pé de serra.
Lá
fora, o vírus ceifa milhares de vidas e a pandemia enlouquece o planeta.
Penso,
agora, nos seres e em todas as coisas, nos dias e no amor essencial.
Sinto que
seja a empatia que me leva a trocar de lugar com o outro, o meu semelhante.
Num
milésimo de segundo, tenho o sentimento de que a escolha e o amor harmonizam e
concretizam a opção pela desarmonia do mundo pandêmico lá de fora. O caos. Toc.
Toc. Toc.
É
a vaquinha Esperança batendo, delicadamente com os seus pequenos cornos, no
vidro da janela. Ser de sapiência este bichinho; nem mais nem menos potência em
cada pancada. Sinfonia acústica.
Já
passa das 17h e não limpei metade do salão.
Desde
o início do confinamento respondo pela harmonia e higienização de ambientes na
comunidade. Isolados, vivemos imunes.
Contramão.
Desligo
o aquário imaginário e sigo limpando tudo.
Levo
comigo a impressão de uma derradeira piscadela daquele peixinho palhaço,
bailando no alto esquerdo da caixa ilusória de vidro. Piscadela de “olhos sem
pálpebras”.
Olhos
hipnóticos, cúmplices.
Janelas
da alma.
Um
dia, quem sabe, depois que tudo isto passar, navegarei com eles rumo ao grande
oceano.
***
Texto referencial palestra Leitores & escritores: interações, 28/09/2021 – Gilberto Motta.
OS SEIS PASSOS PELOS BOSQUES DA FICÇÃO, 1984, reúne as seis conferências que Eco proferiu em 1993 na Universidade de Harvard, nas quais resolveu abordar os mecanismos que sustentam uma obra de ficção e, mais especificamente, sua leitura.
Ler um livro, seja ficcional ou acadêmico, pode ser uma das experiências mais
singulares da existência humana. O hábito de decodificar mensagens subjetivas,
de se entrelaçar em simbologias, de criar cenários imaginários nunca sequer
pensados pelo autor, ao ler um texto, não é apenas enriquecedor e lúdico, mas
também extremamente complexo.
O
autor Umberto Eco, no primeiro texto “Entrando no bosque” de seu livro “Seis
passeios pelos bosques da ficção”, clarifica tal processo e com isso acaba por
esclarecer pontos fundamentais sobre como ocorre a compreensão de um texto.
Acerca
desse tema, Eco enumera importantes conceitos como: leitor empírico,
leitor modelo, autor empírico, autor modelo, narrador, cadência do texto e a
importância do leitor ao tomar escolhas.
Mas
afinal, como se dá essa relação aonde ambos criam universos complexos a partir
de suas interpretações próprias?
É preciso refletir e relacionar esses conceitos, de forma a esclarecer evidenciar algumas pistas de que fala Eco.
Desenvolvimento:
O autor, que começa seu texto demonstrando a fundamental importância do leitor,
destaca que, muito além de ser importante para o processo de se contar uma
história, este faz parte da mesma.
Para
Eco, todo texto necessita que o leitor faça parte do seu trabalho em passar
informações. Nesse sentido, narrativas que deixam mais espaços em branco, isso
é tenham descrito menos coisas sobre seu universo, estimulam o leitor a
imaginar, e se fazer parte da obra.
Eco,
por meio de uma metáfora, descreve esse mesmo processo de participação do
leitor como sendo similar a se perder num bosque, com liberdade de escolhas e
múltiplas opções de caminho, com variadas opções de interpretação. Sobre isso,
o autor, afirma que não raro escritores optam por deixar propositalmente seus
leitores perdidos no bosque refletindo mesmo após o fim de uma obra.
Toda
narrativa ficcional, segundo Eco, é por natureza rápida, pois, para construir
um mundo complexo, com diversos acontecimentos e múltiplos personagens, não se
pode dizer tudo sobre este, deixando espaços a serem preenchidos pelo leitor.
Apesar disso, com uma passagem de Calvino, o autor comenta que a demora
deliberada também tem seu espaço enquanto uma ferramenta para o escritor. Essa
“demora” pode ser útil para gerar tensão e questionamentos, por vezes podendo
dar tempo proposital para o leitor refletir e reparar uma sutileza. Nesse
sentido temos explicitada também, a importância da cadência do texto(
velocidade do texto) no processo de interpretação de um texto narrativo.
O
teórico, ao falar sobre esses dois temas, compara trechos das obras “A
estalagem assassina” e “Metamorfose” dos autores Carolina Invernizio e Kafka.
Eco faz referência ao fato de que apesar de ambos serem textos narrativos
rápidos, “Metamorfose” o faz de forma a deixar mais opções em aberto e dando
mais possibilidades de interpretação ao leitor, enquanto que “A estalagem
assassina”, apesar de veloz, é descritivo e delimita seu próprio universo,
tirando do leitor parte dessa tarefa. Com isso, Eco demonstra que tanto a
cadência do texto, quanto as lacunas que o autor deixa ,dependem da mensagem
que aquele que escreveu o texto quis passar e de quem era seu público alvo.
O
autor, após refletir acerca da importância do leitor no processo da leitura,
estabelece que existam dois tipos de leitor:
O leitor empírico pode-se tratar de
qualquer um quando lê um livro, vagando despretensiosamente pelo bosque da
interpretação, e em geral utilizando o texto para projetar suas próprias
paixões pessoais, provenientes da sua própria percepção e experiência e que
podem ser inerentes ao texto narrativo ou não.
E
o leitor modelo, é o tipo de leitor que a obra previra para
preencher suas lacunas corretamente, e segundo Eco, esse leitor é
criado a partir da própria obra.
Nesse
sentido deve-se observar que tanto a velocidade do texto quanto outros recursos
literários, bem como própria estrutura do texto em si induzem a formação desse
leitor.
Para
explicar o que cria o leitor modelo, Eco, expõe os conceitos de: autor
empírico, autor modelo, diferenciando-os e demonstrando como esses se
relacionam na interpretação de um texto narrativo.
O
autor empírico, em muito se assemelha com o leitor empírico. Este pode ser
interpretado como o lado mais pessoal, particular, do escritor. Para Eco, o
autor empírico não tem lá muito interesse, o autor nos lembra de que é muito
mais válido conseguir preencher corretamente as lacunas da interpretação de um
texto narrativo, se aproximando do leitor modelo, do que saber aspectos
pessoais da vida de seu autor.
Já
o autor modelo pode ser entendido como um conjunto de recursos textuais, às
vezes lógicos, às vezes de natureza simbólica, que acabam por formar uma
estrutura e certos padrões capazes de serem reconhecidos como “regra”, que
acabam por moldar e encaminhar as escolhas do leitor modelo em seu passeio por
aquele bosque, isso é, aquele livro. É esse mesmo autor modelo que também molda
o leitor empírico até que esse venha a perceber seus padrões de estilo e torne
a se aproximar do leitor modelo.
O narrador, muitas vezes confundido com o autor empírico ou com o autor modelo, trata-se apenas de uma voz que pretende guiar o leitor através da narrativa textual. Apesar deste não se tratar do autor modelo em si, o narrador em alguns casos pode ajudar o autor modelo em sua função.
Portanto, para Umberto Eco, a relação do leitor com a obra além de fundamental é quase simbiótica. Para não se perder no bosque, você tem que ser um leitor, que siga as regras implícitas no texto, um leitor modelo. E leitores modelo, por sua vez, são formados e moldados por bons autores modelo e criados por boas obras.
Vivemos
tempos de guerrilha semiológica superdimensionada; hiper oferta de conteúdos,
dados, informações, etc. Mas tempo de quantidade, não qualidade. Que histórias
contar? Como contar? A ressignificação da forma de ler determina os
desafios das formas diferenciadas de escrever, como bem percebeu Eco.