Quando fui convidada pelo autor Cassiano Silveira para ler três
contos de um livro de diversos autores e depois tecer alguns comentários numa live
de lançamento, mas sem dar muitos detalhes comecei a ficar nervosa. Para me
"tranquilizar" ele contou que o Mário Motta participaria também. Ao
ler o título do livro, Tudo poderia ser diferente (inclusive o título),
comecei a sorrir, essa frase tem sido o começo de muitas reflexões minhas,
sobre a sociedade de uma maneira geral, sobre mim mesma e as minhas escolhas e
também sobre a maneira como o Brasil está atualmente.
Então li a apresentação do livro feita pelo Mário Motta (Vide ADENDO IV),
simplesmente incrível.
E o Manual de instrução (Vide ADENDO V) do livro é muito legal, vontade de
pedir para todos as editoras colocarem um manual de instruções em seus livros,
pois ele já nos faz entrar no livro em grande estilo, já explica para que servem
livros, em geral, e também possui uma introdução de cada uma das histórias .
Os três contos escolhidos para que eu fizesse a leitura foram: De
Absinto Pioneiro á Lara Pia, escrito por Edna Domenica Merola; O
terraplanista, escrito por Cassiano Silveira e por último, mas não menos
importante: O silêncio da nossa casa, por Marlene Xavier Nobre.
- De Absinto Pioneiro à Lara Pia
"Esta é uma história bem brasileira circunscrita sob a
máxima:
-Sabe com quem você está falando?"
Assim começa o texto. Essa primeira frase do conto nos remete
a alguém que tem certeza do seu poder perante determinada situação ou a alguém
que tem uma profissão que o beneficia ou que o protege. Quantas vezes ouvimos a
notícia de que algum crime não está sendo investigado da maneira como deveria e
ficamos intrigados pensando quem será que era? Será que era realmente alguém
tão poderoso e influente que nem a justiça pode tocar?
"Mas, logo a entrar na escola, Lara Pia, descobre que seu
nome é objeto de trocadilho..." essa parte do texto me fez sentir uma
leveza quase como se fosse um momento em que mesmo rodeados por corrupções e
fraudes possamos ver a vida de uma maneira onde sempre tenhamos algo em que nos
faça sorrir.
O conto é sobre a família que poderia ser qualquer família
influente, rica e poderosa, de qualquer região do país ou de quase qualquer
bairro daqui de Floripa. Essa família começou desde seus primeiros integrantes
a usar a influência e a política para tirar vantagem e organizar não as regiões
em que moravam, mas sim as suas vidas, isso me lembrou muito vereadores dos
nossos bairros, principalmente aqui do Rio Vermelho em que existem ruas que
foram lajotadas há anos e outras que ainda nem têm previsão, e olha que nem
estou falando das ruas clandestinas, pois muitas dessas foram lajotadas com o
dinheiro da Prefeitura (ou seja, nossos impostos).
Ao ler o título já fiquei imaginando a mulher Lara Pia, como seria
a sua vida. E ao finalizar o texto a autora deixa o questionamento: "-Tudo
poderia ser diferente?"
A minha resposta mais sincera é: espero que sim, espero que logo
tudo comece a ser diferente, no mundo, na política e principalmente nos nossos
bairros.
- O terraplanista
A crônica já começa demonstrando com muita precisão uma parcela da
sociedade, imaginei vários conhecidos famosos e anônimos no lugar de Rolando, o
protagonista.
"O experimento científico de maior importância da história da
humanidade estava prestes a acontecer. Os jornais impressos, as revistas de
ciências, os noticiários [...] todos lançavam a grande matéria: Rolando vai
para o espaço."
O texto refletiu a nossa realidade de uma maneira cômica e
conforme fui lendo não conseguia desvendar qual seria o desfecho da história e
fiquei bem impressionada com o desfecho e com toda a sua semelhança com a
realidade.
- O silêncio da nossa casa
Ao começar a ler o texto, entrei na casa dela, sentindo todo o
horror dos tempos da ditadura, nunca havia lido um texto que me colocasse aqui
em Florianópolis nesses perigosos anos, achei o texto incrível. Ao finalizar, a
única reflexão possível foi como estamos deixando isso acontecer novamente, há
alguns anos temos sentido medo de nos expressar e de dizer publicamente o que
pensamos dos governos e governantes.
No tempo em que estamos vivendo esse livro é um ato de coragem
imensa e só tenho a agradecer por ter sido convidada em primeira mão a ler três
de seus contos antes do lançamento. Desejo a todos os autores um imenso
sucesso!
Texto de Cássia Regina Batista, bibliotecária da Prefeitura
Municipal de Florianópolis, fã de Harry Potter, apaixonadíssima por Romances de
época e pela Feia mais bela, em amor total por Thabata (minha filha) e casada
com Ivan.
REFERÊNCIAS
MEROLA, E.D. Manual de Instruções e De Absinto Pioneiro a Lara Pia. InTudo poderia ser diferente (inclusive o título). Amazon Kindle, e-book, 2022.
MOTTA, Mário. Apresentação. InTudo poderia ser diferente (inclusive o título). Amazon Kindle, e-book, 2022.
NOBRE, Marlene. O silêncio da nossa casa. In Tudo poderia ser diferente (inclusive o título). Amazon Kindle, e-book, 2022.
SILVEIRA. O terraplanista. In Tudo poderia ser diferente (inclusive o título). Amazon Kindle, e-book, 2022. Informes sobre a aquisição da coletânea Tudo poderia ser diferente. Disponível em
https://www.amazon.com.br/Tudo-poderia-ser-diferente-inclusive-ebook/dp/B09RMRSZSF/ref=sr_1_1?__mk_pt_BR=%C3%85M%C3%85%C5%BD%C3%95%C3%91&crid=120IWQT84EJF3&keywords=coletanea+tudo+poderia+ser+diferente+inclusive+o+t%C3%ADtulo&qid=1647103160&s=books&sprefix=coletanea+tudo+poderia+ser+diferente+inclusive+o+t%C3%ADtulo%2Cstripbooks%2C193&sr=1-1
ADENDO I: De Absinto Pioneiro a Lara Pia. Edna Domenica Merola
Esta é uma história bem brasileira circunscrita sob a máxima:
– Sabe com quem você está falando?
A narrativa desta saga começa em 1873, com a fundação de um
pequeno povoado que outrora fora reconhecido pelo nome do rio em torno do qual
se fixaram os pioneiros.
Dentre os prováveis fundadores está (segundo ele próprio) Absinto
Machado de Alencar, primo de José de Alencar. Por esse motivo passa a se
apresentar como Absinto Pioneiro Machado de Alencar. Por ser politicamente
correto, posteriormente, sugere às demais autoridades que o local seja
chamado pelo nome de um músico brasileiro, já que é de bom tom valorizar as
artes nacionais, em especial a ópera.
Absinto Pioneiro sugere ainda que a data oficial para celebrar a
fundação da localidade seja o dia 16/02/1873, data da apresentação da
ópera Fosca, de Carlos Gomes.
Por mérito e esforço pessoal, o pioneiro consegue
articular o necessário cartucho para averbar o nome da cidade
ao próprio. Em nove de novembro de 1889, o fazendeiro Absinto Pioneiro Machado
de Alencar vai ao último baile do império (na Ilha Fiscal) e pede a um assessor
de D. Pedro II a autorização para incorporar o nome do município ao seu nome e
da família, sendo atendido na véspera da proclamação da República. Ou seja, em
catorze de novembro de 1889, passa a se chamar Absinto Pioneiro Machado de
Alencar Carlos Gomes.
Passam-se anos marechais... Passam-se décadas republicanas até
que, em 24 de outubro de 1930, o jornalista José Machado de Alencar Carlos
Gomes (sobrinho de Absinto Pioneiro) noticia na Gazeta de Carlos Gomes o Golpe
de estado, e o fim da República Velha.
Em 19/08/1943, na biblioteca de Carlos Gomes, em solenidade
comemorativa do centenário do conto O gato preto de Edgar Alan
Poe, o vereador Absinto Machado de Alencar Carlos Gomes é avisado de que sua
mulher está dando à luz os gêmeos Esaú Absinto e Jacó Absinto.
No dia seguinte, em páginas diferentes da Gazeta de Carlos
Gomes são noticiadas as atrocidades da Segunda Guerra do século XX e o
nascimento dos dois bisnetos de Absinto Pioneiro Machado de Alencar Carlos
Gomes.
Em 1950, os gêmeos entram na escola e vão ser colegas de Curvelo
de Assis. Lembram-se dele? Devem lembrar-se porque, cedo ou tarde, todos
percebem que suborno e delação são frequentes, que cada um tem seu preço, e que
muitos acabam se vendendo.
Em vinte e quatro de agosto de 1954, no mesmo instante em que foi
noticiada, pelo rádio, a trágica morte do presidente, o prefeito de Carlos
Gomes – Absinto Machado de Alencar Carlos Gomes – é avisado de que sua mulher
está dando à luz a menina Maria Alzira Vargas de Alencar Carlos Gomes.
Em vinte e um de abril de 1960, a família Carlos Gomes comparece à
solenidade da fundação de Brasília. Nesse mesmo ano, os gêmeos votam pela
primeira vez.
Em 1962, Esaú Absinto e o irmão gêmeo Jacó Absinto apaixonam-se
por Flora de Assis que morre de amor, precocemente. Na noite após a missa de
sétimo dia, Esaú Absinto tem um sonho que considera um chamamento e entra para
o seminário. Jacó Absinto apoia-se em colegas e formam uma banda de rock.
Em 31/03/1964, ocorre um golpe militar, no Brasil. Após esse
evento, Esaú Absinto Machado de Alencar Carlos Gomes deixa o seminário, termina
a graduação em Filosofia e vai morar em Paris.
Em 16/02/1973, Esaú Absinto retorna ao Brasil para a solenidade de
comemoração do Centenário de Carlos Gomes. Após o evento, numa excursão
nacional, conhece a bela Iracema de Alencar e mantém com ela um namoro. Em
16/02/1975, casam-se e vão morar em Brasília.
Em janeiro de 1980, Esaú Absinto retorna para Carlos Gomes com a
esposa Iracema que dá à luz uma menina e falece logo em seguida. Um nascimento,
em 01/02/1980, um enterro em 02/02/1980... Mas Jacó Absinto (por direito de
padrinho) escolhe o nome da sobrinha, batizando-a de Lara Pia. Escolhe Lara, em
homenagem à personagem do filme Doutor Jivago, e Pia –
feminino de pio – que como adjetivo quer dizer benigna, para
levantar o astral da criança frente às circunstâncias negativas de seu
nascimento.
Mas, logo ao entrar na escola, Lara Pia descobre que seu nome é
objeto de trocadilho em referência a alguns membros de sua família serem
responsáveis por alguma negociata larápia, algum crime do colarinho branco,
algum uso de informação privilegiada. Tais injustiças deixam a
menina traumatizada, até ser curada num grande templo por obra de uma líder
religiosa versada em transportes corporais de dólares para o
exterior.
No final de 2014, encontramos os gêmeos morando novamente no
antigo solar da família. Jacó está divorciado e não teve filhos. Esaú
está viúvo e a única filha dele deixou a próspera Carlos Gomes.
Os deputados federais eleitos em 2014 para o mandato 2015–2018
tomam posse em 01/02/2015, e junto com eles está Lara Pia Carlos Gomes. Em
2016, seus 366 coleguinhas e mais Lara Pia votam a favor do impeachment da
presidente.
Lara Pia se reelege e continua a expandir seu rol de amizades. Em
junho de 2019, Lara Pia ajuda uma colega deputada a contratar o funcionário
ideal para resolver uma pendenga conjugal que demandava pulso firme, boa mira e
fé (muita fé) no gatilho! Sobre a solidariedade de Lara Pia ninguém fica
sabendo, já o mesmo não acontece com Flordelei. Porém o que conta mesmo é a
imunidade prisional a parlamentares e o apoio da igreja. Afinal, é tudo
obra do diabo!
Três dos cinco empregados do velho solar morrem de Covid 19, em
2020, deixando órfãos que a família Machado de Alencar Carlos Gomes ignora.
No início de fevereiro de 2021, os gêmeos Esaú Absinto e Jacó
Absinto furam a fila da vacina contra o COVID 19. Graças à lei do Gerson,
sobrevivem.
Em 19/08/2043, em meio às comemorações do bicentenário do conto de
terror O Gato Preto, em dupla homenagem a Edgar Allan Poe e aos estudos da
psicologia da culpa – os habitantes de Carlos Gomes
testemunham uma dupla eutanásia: a dos gêmeos Esaú Absinto e Jacó Absinto.
De resto, só sei que foi assim que a saga da
família Machado de Alencar Carlos Gomes reuniu fatos históricos, musicais,
literários, parlamentares... Sem culpa... pela aderência aos duplos
malignos: concentração de renda e injustiça social; injustiça social e uso da
coisa pública como se fora privada; uso da coisa pública como se fora privada e
delação premiada; delação premiada e imunidade prisional parlamentar,
imunidade prisional parlamentar e concentração de renda... Num círculo vicioso.
– Tudo poderia ser diferente?
ADENDO II: O terraplanista. Cassiano Silveira
O experimento científico de maior importância da história da humanidade estava prestes a acontecer. Os jornais impressos, as revistas de ciências, os noticiários televisivos, os portais de notícias virtuais, os mais proeminentes perfis do Instagrão e do Feicibuqui, todos lançavam a grande manchete: “Rolando vai para o espaço!”.
O grande Rolando, pesquisador autodidata em geometria sideral, maior nome do terraplanismo universal, iria finalmente destruir a mentira de que a Terra é uma esfera, uma elipse, um geoide ou qualquer coisa parecida com uma bola. A Terra, o nosso planeta, era obviamente plano, como qualquer criança conseguiria perceber olhando uma bacia d’água: se fosse esférico, a água dos mares e rios escorreria e cairia no vazio; se fosse uma esfera giratória, então, pior ainda, pois seria lançada longe pela força centrífuga. Gravidade? Ah, conta outra!
O grande Rolando iria finalmente provar que os terraplanistas estavam certos, a Terra era uma grande bacia celestial na área de serviços de Deus. Iria demostrar aos que acreditavam na Terra esférica que estavam redondamente enganados. Para tanto, usaria os mais precisos, mais perfeitos, mais confiáveis instrumentos existentes. Usaria os próprios olhos! Havia inclusive visitado o oftalmo: miopia compensada, lentes fotocromáticas e antirreflexo, um luxo só.
O grande Rolando há anos trabalhava no projeto da sua vida, viajar ao ponto mais alto da atmosfera para contemplar e comprovar a baixela geológica sobre a qual caminhava o homem e se depunham mares, terras, plantas, animais e todo o resto. Buscou financiamentos, fez uma vaquinha virtual, rifou seu cachimbo, passou seu chapéu na Convenção Mundial dos Astrônomos Terraplanistas e por fim, com o donativo de um excêntrico milionário francês radicado na Ilha de Santa Helena, reuniu o dinheiro necessário. Comprou uma passagem no foguete espacial de Élio Mosca, que ia colocar mais um satélite em órbita da Terra. Alguns terraplanistas mais exaltados criticaram a carona, pois ir com Mosca até o mais alto da atmosfera era como pedir ao Diabo uma carona até o Paraíso:
– Ele diz que põe satélites em órbita da Terra! – exclamava um.
– Diz que é possível viajar à Marte! – falava outro.
– Um blefe! – respondia Rolando – não há órbita da Terra, ela é plana.
Mas, para atingir o grande objetivo, era necessário fazer associações não muito confortáveis. “Os destinos justificam os caminhos”, dizia Rolando, especialista em paráfrases de lugares comuns. E assim, chegou o grande dia!
O grande Rolando se apresentou à plataforma de lançamento já vestido com todas as desnecessárias roupas espaciais. “Deixe estar, vamos teatralizar um pouco”. Tomou seu lugar no assento, ao lado da tripulação. Cinco, quatro, três, dois, um! Fez-se um ruído ensurdecedor no interior da nave. Tremores, calor, uma pressão insuportável no peito; Rolando perdeu os sentidos. Quando voltou a si, reinava uma paz celestial. Olhou por uma janela e ficou surpreso: via um fundo negro pontilhado de luzes pulsantes, inúmeras, ornando um céu que parecia ser bem maior do que imaginara. “Talvez eu precise rever meus cálculos sobre a altitude do domo...”, pensou vexado, mas sem deixar transparecer a surpresa. Os tripulantes pareciam tranquilos, apesar de ocupados, observando telas, apertando botões e manipulando touch screens. Foi então que ele olhou para a janela do lado oposto à primeira. Qual foi a surpresa de Rolando quando deparou com uma curva e azulada superfície que cobria quase todo seu campo de visão, exceto por um trecho de horizonte arqueado no quadrante superior esquerdo da escotilha. Sentiu um frio na barriga, mas não era medo de altura. As coisas não estavam saindo conforme havia imaginado. Estava vendo coisas que não sabia explicar e lá no fundo, bem lá no fundo de sua mente, sentiu que suas certezas absolutas poderiam ser abaladas. Chacoalhou a cabeça para espantar a ideia, que só podia ser coisa do Cão, muito bem articulado como sempre!
– Grande Rolando! Bem-vindo ao espaço! Gosta do que vê? Você perdeu a parte boa da viagem! – disse o comandante da nave.
Não fez caso da ironia do comandante. Soltou-se do assento e, pasmem, flutuou até a janela. Não quis pensar no fato, havia reflexões mais urgentes diante dele. Aproximando o rosto da abertura procurou observar a Terra como um todo, mas não havia distância para isso.
– Vamos fazer um trajeto diferente nessa viagem, Sr. Rolando. Iremos adentrar mais profundamente no espaço para lhe permitir uma visão completa do globo terrestre – anunciou o comandante, enfatizando a palavra “globo”.
– Cuidado com o domo...
– Aham – respondeu o comandante, olhando de esguelha para o navegador que balançava negativamente a cabeça, na face uma expressão de tédio.
O grande Rolando afundou-se em seu assento, no sentido figurado da expressão, olhando para o próprio joelho, a cabeça envolvida por um torvelinho de pensamentos desencontrados. Após um tempo que ele não soube precisar quão longo foi, olhou novamente pelas janelas. De um lado nada mudara, os pequenos pontos de luz continuavam aparentemente imóveis, aparentemente muito distantes, sobre um fundo aparentemente muito negro. “Definitivamente, preciso recalcular a altitude do domo”, pensou. Antes de virar para o lado oposto, respirou fundo. Voltando-se, foi acometido por uma vertigem, como se estivesse caindo em um poço escuro infinito; seu cérebro chacoalhou como roupas dentro de uma máquina de lavar, enquanto seus neurônios faiscavam como uma torradeira em curto-circuito. Alucinação? Pesadelo? Ingredientes suspeitos naquele guaraná cor-de-rosa? Pela escotilha observava um planeta sereno, azul, flutuante e redondo.
O grande Rolando se sentiu pequeno. Por São Tomé, não podia acreditar no que via! Aquela cena punha por terra a Terra plana, todo o sólido conjunto de conhecimento construído por ele e seus visionários parceiros. Talvez seus olhos o enganassem? Quem sabe alguns graus a mais ou a menos nas lentes dos seus óculos pudessem corrigir essa aberração. Olhou ao redor, procurando algo que lhe consolidasse a fé que insistia em sublimar, mas só enxergava fios, botões, luzinhas piscantes e telas. Telas, lógico! Só podia ser isso! No lugar das janelas, Élio Mosca havia mandado colocar telas, monitores que ficavam continuamente passando aquele vídeo surreal, mostrando uma Terra redonda suspensa no nada! Possivelmente, a “nave” nem havia saído do chão. Ele estava ali, acuado como um ratinho de laboratório. Haviam-no colocado em uma caixa e o estavam tentando convencer com uma mentira. A verdade estava fora da caixa, ele sabia e iria comprovar.
O grande Rolando havia renascido, toda sua coragem e perspicácia pulsando em suas veias. Jogou fora os óculos e se transformou no herói que estava destinado a ser. Com olhos de águia (míope), fez uma varredura pela cabine e, preso a um cantinho do compartimento, encontrou o instrumento ideal para sua necessidade atual. Lá estava o instrumento de precisão mais relevante já criado pelo ser humano, um reluzente martelo, do qual Rolando precisava muito agora. Tentou correr em direção à ferramenta, mas seus pés patinaram devido à ausência de gravidade.
– Como que o Mosca faz essa merda?!
Agarrou-se então onde fosse possível e se puxou até chegar ao objeto desejado, empunhou-o brevemente, voltou-se para a janela/monitor onde cintilava um lindo globo azul giratório e o arremessou. Na mente de Rolando tudo aconteceu em câmera lenta, o martelo viajando rumo ao alvo, a expressão de surpresa da tripulação, que demorara demais a perceber o que estava acontecendo e a sensação de alívio, satisfação e orgulho crescendo em seu peito. O martelo atingiu seu alvo bem no centro, como se atingisse aquela mentira redonda e azul no meio da tela, que se estilhaçou de imediato.
Os jornais impressos, as revistas de ciências, os noticiários televisivos, os portais de notícias virtuais, os mais proeminentes perfis do Instagrão e do Feicibuqui, todos estampavam a trágica notícia: “Nave de Élio Mosca explode!”
Os técnicos não sabiam explicar o que havia acontecido. Todas as leituras da nave estavam normais, nenhum objeto fora percebido em rota de colisão com o veículo. Cogitou-se que um fragmento de lixo espacial poderia tê-la atingido, pequeno demais para ser detectado, mas grande o bastante para danificar a estrutura da nave, que se desintegrou por completo. Todos os tripulantes haviam perecido. O meio científico terraplanista, porém, jamais se convenceria do “acidente”. A obviedade do acontecido era incontestável: diante da possibilidade de um proeminente representante da Terra chata comprovar as teorias da Terra rasa, os cientistas ortodoxo-redondistas haviam se organizado para eliminar Rolando, numa conspiração friamente arquitetada para manter o controle da população mundial. O movimento terraplanista, que alguns mal-intencionados desejaram desestabilizar e enfraquecer, somente se fez autoafirmar. A cada convenção, os integrantes dedicavam-se fervorosamente a convencer quem já estava convencido, obtendo êxito invejável e convencendo-se a si mesmo ainda mais, em um feliz círculo vicioso isento de contestação. O movimento até atualizou sua denominação: agora imperava o terraplanismo-rolandocrônico, ou rolandismo-terraplanótico..., sei lá.
Rolando comprovara, absolutamente, a teoria da Terra plana. O grande Rolando!
ADENDO III : O silêncio da nossa casa. Marlene Xavier Nobre
Era 1964, tinha onze anos de idade.
Guardo na memória a triste lembrança de meu pai. Subiu o morro com os cabelos revirados e os olhos arregalados. Foi amparado por minha mãe.
De imediato, não entendi a gravidade do que vivíamos. Soube depois que meu pai fazia parte de um movimento político.
Foi numa segunda-feira. Meu pai estava no trabalho, em sua função de gráfico. A polícia militar fez um arrastão pela cidade à procura do grupo a que meu pai pertencia.
Ele não havia matado e nem roubado. Como cidadão, ele lutava pelos seus direitos. Prenderam todos os seus amigos.
Meses depois, meu pai ficou sabendo que seus companheiros haviam sido levados para a Ilha das Cobras (RJ), onde foram torturados e mortos.
Meu pai ficou dois meses preso no quarto de nossa casa. Lembro-me de que na casa de madeira na qual morávamos tinha frestas. Minha mãe, minhas irmãs e eu colocamos jornais para tapá-las.
Fui escolhida para ir, diariamente, comprar jornais na banca que ficava na Avenida Mauro Ramos, à altura do número 982. Antes que saísse de casa, meu pai recomendava que se alguém perguntasse por ele, que não respondesse. Poderia falar apenas com o dono da banca, mas em tom bem baixo, e dar notícias dele.
Todas as noites ele ouvia, no rádio, as notícias sobre o país.
Foi uma época muito tensa. Minha vida e dos irmãos ficou muito restrita. Só podíamos brincar no quintal, mas não podíamos dizer uma palavra. O silêncio imperava. Só saíamos para ir à escola.
Quando passavam aviões da FAB, meu pai ficava em pânico.
Meu pai era algoz de si mesmo. Não via o sol e nem a luz do dia. Ficou de barba e cabelo por fazer. Estava bem abatido.
Minha pobre mãe nada podia fazer além de cuidar e de se dedicar a ele, naquele momento difícil.
Sinto que ele foi forte para resistir psicologicamente e conseguir sobreviver. Sempre dizia para minha mãe que sua luta era em benefício de seus netos.
Os netos de meu pai cursaram a universidade. Isso foi uma grande abertura para a nossa família e para muitas outras de origens semelhantes à nossa.
Os bisnetos de meu pai experimentam hoje o retrocesso histórico relativo ao cerceamento de liberdades.
O bisavô deles, como eterno militante, deve estar novamente sofrendo por isso, no Além.
ADENDO IV
Apresentação
Quando recebi o convite para apresentar essa
coletânea, juro que titubeei. Depois percebi que –
vacilei – identificaria melhor minha reação. Por fim – aceitei, foi o verbo que
abraçou a ação.
Quem sou e porque eu? Pensei.
Já conhecia a maior parte dos autores com quem
passei uma tarde deliciosa conversando sobre comunicação e aprendendo um pouco
mais sobre a capacidade humana de se expressar, de se relacionar com o próximo
e respeitá-lo, numa Oficina que os reunia e que por fim, motivou essa
coletânea.
Fiquei
maravilhado com a diversidade de seres tão semelhantes, reunidos por um único
sentimento – o amor às palavras e o que elas conseguem expressar.
Senti-me
honrado, mas confesso meu vacilo foi imaginar como apresentá-los se a qualidade
de seus textos o fará por si.
Quando recebi os originais, senti um certo alívio,
pois o Manual de Instruções que segue essa humilde apresentação, é mais
que perfeita do indicativo para prefaciá-los.
Resumiu
exatamente o que eu pensei fazê-lo e que não só se tornou desnecessário, como
já nos dá uma visão da impressionante diversidade de temas tão próximos do
mesmo fio condutor da coletânea: o amor pelas palavras e a incrível capacidade
de expressar os mais diversos e remotos sentimentos humanos, nas diversas
formas como terão oportunidade de ler e que antecipo roubando do Manual: contos,
crônicas, cartas, texto para teatro, fábula.
Se de alguma forma eu puder criar uma expectativa,
provocar uma curiosidade ou despertar um sentimento de busca por algo novo em
você, caro leitor, terei cumprido minha nobre missão e posso garantir que o
cardápio de estilos que segue, não perde em nada para os menus dos melhores
restaurantes literários do pedaço.
Bom apetite e que sua fome de palavras, ideias e
sentimentos, seja devidamente saciada.
Mário Motta
Apresentador
Jornal do Almoço , NSC TV Florianópolis, SC.
ADENDO V: Manual de instruções
Isto é um livro. Pode ser que não o manuseie há
tempos ou nunca o tenha feito. Este objeto não resiste a intempéries, em tempos
líquidos. Por ter sido escrito por um grupo de autores tem vida em
múltiplas idades que habitam corpos diferentes, residentes em diferentes
cidades, nascidos em tantas outras... Isso faz dele um objeto forte e potente
desde que em mãos que o apontem para leitura.
Leia-o como se fosse escrito por um único pensador,
já que foi aparado e batizado num gesto conjunto em seu nascedouro. Repare, no
entanto, em cada toque pessoal tatuado em composições artísticas que chamamos
de contos, crônicas, cartas, texto para teatro, fábula.
De Absinto Pioneiro a Lara Pia toma por referência o conto O Gato Preto, de
Poe, para narrar a saga de uma família que exerce dupla maldição sobre o
povo: enriquecimento ilícito e trato do patrimônio público, inclusive
imaterial, como se fosse privado.
Voo cego traz um diálogo entre
dois personagens: um mandante negacionista e um piloto que deve obedecer à
revelia da pertinência ou não da ordem dada.
O Crush da Professora “Z”
Maria parte
de uma citação da peça A Cantora Careca, de Ionesco, para revelar
impressões sobre o estilo de comunicação de mandantes que combatem as artes, o
ensino e a lógica, à semelhança do teatro do absurdo.
O terraplanista
trata da retomada contemporânea de algo muito antigo: acreditar apenas no que
pode ser visto e tocado, aceitar apenas argumentos favoráveis à própria
opinião, associar tudo aquilo que o contradiz a uma teoria de conspiração.
Carta ao Autor Desconhecido é resposta a uma carta anônima
que circulou em redes sociais.
Das belezas da democracia é uma fábula que enfoca o voto livre para eleger o
presidente como algo envolvido por animosidades e pichações. A democracia
comparece como trabalhosa e extenuante até se tornar agonizante e morta, como
anseio de ditadura.
O silêncio da nossa casa: um militante se aprisiona na própria casa, em 1964,
numa cidade brasileira.
A Freira de Blumenau é um conto jocoso sobre uma possível reunião de
militantes e simpatizantes nazistas de todo Brasil, e de como esse evento, por
obra do acaso, acaba por esquentar a relação de um jovem casal.
Anos de chumbo,retrata uma história vocacional que sofreu
interferências da mudança repentina dos conteúdos aos exames vestibulares de
Jornalismo, na universidade pública, em 1970.
Fique mais um ano, meu bem! – é uma carta apaixonada a uma companheira e uma
narrativa sobre a militância política.
Por entre mimosos jacarandás
tem por
narradora uma diretora de escola, integrante de um grupo de educadores
progressistas que é punido por gestores autoritários.
1959, ganhos e perdastraz memórias de infância
para situar a corrida espacial que gerou a tecnologia e mudou profundamente as
relações entre pessoas próximas.
Multidãoretrata impressões sobre os
invisíveis, as
não identidades, os sem endereço.
Ei, cuidado, Fênix! – cântico para ninar pandêmicos. Relata os esforços
existenciais para enfrentar notícias obtidas pelas diferentes mídias ou ouvidas
do interlocutor, durante uma pandemia.
A terceira pessoa reporta ao jogo algoz
versus vítima cujos lances incluem: ver no outro o que não consegue ver em si
mesma, debater com o outro para sustentar a autoimagem, ter mau humor devido à
insônia (ou insônia devido ao mau humor?), digladiar na arena Rede Social para
não encarar sua insônia. No final, o espectro da autoajuda comparece mediado
pela utopia.
Cotidemia, por meio da criação de um
neologismo, narra o cotidiano durante a pandemia.
A Antífona, de Sócrates aborda o desprezo às fontes
de pesquisa fidedignas, assim como o desconhecimento dos cânones da literatura
e da Filosofia, para ilustrar a banalização da morte.
Espanto, microconto de inspiração
no ritmo poético de Guimarães Rosa, intui os sofrimentos pandêmicos na
percepção do sertanejo: “infinito é nada, dotô!”.
ESCRITA e escrita aborda com sensibilidade a
importância do apoio materno na aprendizagem infantil.
Interminável é uma crônica poética sobre intermináveis dias e noites duma pandemia. Metalinguística, remete à autocensura do
criador.
Pronto finalrefere à ferida narcísica,
por um lado,e à sociedade da imagem, por outro. Assim como à finitude.
Edna DomenicaMerola
organizadora